Entre o acesso social à terra e a repressão (i)legal desse direito

"O novo Código de Processo Civil dá alguma esperança de se diminuir, pelo menos, os péssimos efeitos sociais de decisões judiciais indiferentes àqueles fatores", escreve Jacques Távora Alfonsin.

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Por Jacques Távora Alfonsin*

Uma afirmação categórica, admitida como um dogma perpétuo e indiscutível, inclusive pela administração pública e pelo Poder Judiciário é o de não poder servir de desculpa para ninguém, praticando determinada infração de lei, alegar desconhecimento da sua vigência.

Isso vem desde o Direito Romano, muito anterior a Jesus Cristo: “Ignorantia legis neminem excusat” (A ignorância da lei a ninguém excusa). A notória antiguidade desse preceito parece não ter servido, até hoje, para advertir grande parte do Poder Público, aí evidentemente incluído o Judiciário, sobre uma questão elementar suficiente para colocar em séria dúvida o respeito indiscriminado à sua aplicação: a quem cabe a responsabilidade pela ignorância da lei?

Essa pergunta não passou despercebida pelo Conselho Internacional de Bem Estar Social, em sua 24ª Conferência, reunida em Berlim, entre 31 de julho e 5 de agosto de 1988, coincidentemente, pouco antes de ser promulgada a nossa Constituição Federal. Na oportunidade, Vitit Muntarbhorn, um professor tailandês de Direito Internacional Humanitário, falando sobre “O direito como origem dos problemas sociais – o direito como instrumento de desenvolvimento social”, como se pode ler em publicação das atas dessa conferência, falou sobre a ficção implicada nessa exigência de todos conhecerem a lei:

“Essa máxima sugere esperar-se que todos nós conheçamos a lei. Naturalmente, não é assim na realidade. A maioria das vezes, o homem comum e corrente não compreende nada da complicada legislação do Estado, sobretudo se se encontra distanciado física e mentalmente dos legisladores. Por outro lado, não deixa de ser uma ironia que se pressuponha o homem da rua conhecer as leis (ainda que, em realidade, provavelmente não as conheça), e o Estado não esteja obrigado a fazê-las conhecidas do cidadão. Em termos de responsabilidade: quem deveria ser considerado responsável pelas infrações cometidas contra as leis?? A situação ainda é mais inquietante nos países em vias de desenvolvimento. A pobreza e a falta de meios de vida elementares – como alimentação, educação, saúde, habitação, água, capital, terra – impedem o desenvolvimento do grosso da população. Podem as leis atenuar essas carências? As leis não são autosuficientes, e sua resposta às necessidades está determinada por fatores políticos, econômicos e sociais.” (…) “Inevitavelmente, o marco legal deveria ser visto desde uma perspectiva interdisciplinar.”

A perspectiva interdisciplinar é exatamente aquela capaz de mostrar às autoridades o que a lei não consegue mostrar, ou até vise esconder. Embora o acesso necessário da população pobre à terra seja uma condição de vida imposta pela natureza e essa obedeça sabidamente a outras leis, independentes da vontade humana ou do Estado, os conflitos sociais por esse espaço físico indispensável são julgados com pouco ou nada disso ponderado no decorrer dos processos.

Por força da concentração reproduzida, crescente e ilimitada do direito de propriedade, mantido e defendido por quem tem poder econômico para tanto, esses conflitos são decididos, com poucas exceções, em favor desse direito, mesmo quando ele desrespeita sua função social.

Isso acontece por força de as leis não serem “autosuficientes e sua resposta às necessidades estar determinada por fatores políticos, econômicos e sociais”, além de o “marco legal” sobre uma insuficiência assim necessitar apoio “desde uma perspectiva interdisciplinar”, como aconselhou Muntarbhorn.

Os riscos inerentes à concentração do direito de propriedade sobre terra, um fato notório da iminência de um perigo tanto de efeito social quanto de ambiental – como estudos científicos e sucessivos tratados da ONU têm procurado, sem sucesso, prevenir como universais – são facilmente descartados, hoje, por quem tem poder econômico para promover esse mal, sob o pretexto de isso estar legalmente admitido pela chamada liberdade de iniciativa.

Tanto pela Constituição Federal, porém, quanto pelo Estatuto da Terra e o da Cidade, parece não faltar disposições de lei para os fatores lembrados pelo professor tailandês serem avaliados criteriosamente nas decisões administrativas e nas sentenças judiciais, inclusive no caso de ações nas quais eles possam favorecer e não impedir o acesso do povo pobre à terra, ao contrário da violência presente na repressão oficial violenta a ele imposta com freqüência.

O novo Código de Processo Civil, previsto para entrar em vigor em 2016, dá alguma esperança de se diminuir, pelo menos, os péssimos efeitos sociais de decisões judiciais indiferentes àqueles fatores. Mesmo sob redação ainda insuficiente para instrumentalizar sentenças legais que não sejam injustas, quando ignoram, por exemplo, o fato notório de existir um evidente problema político em causa, reservou-se espaço para não se continuar tratando multidão pobre sem-teto ou sem-terra, quando ré de ação possessória, como se fosse um só indivíduo.

No capítulo reservado a esse tipo de ação, o parágrafo primeiro do artigo 554, determina o seguinte:

“No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.”

Duas observações importantes, pelo menos, já podem ser antecipadas sobre a aplicação futura dessa disposição legal. A primeira: ela já não trata as/os rés/réus como invasores e sim como ocupantes, o que pode afastar de vez, um efeito criminal seguidamente observado nas liminares deferidas em ações dessa espécie: encaminhar-se ao Ministério Público o exame da possibilidade de se denunciar aquelas pessoas como incursas no crime de esbulho possessório.

A segunda: presentes obrigatoriamente no processo, tanto o Ministério Público quanto a Defensoria Pública, abrir-se a oportunidade de exercerem o seu poder institucional para trazer a Juízo representação da administração pública responsável pela implementação das políticas garantes dos direitos humanos fundamentais sociais, cujo atraso de implementação possa ter causado o conflito. Isso sem se falar na chance de abrir-se, no caso, uma ampla negociação, capaz e suficiente para solucionar o problema sem necessidade de prosseguimento da tramitação do processo até sentença.

O tempo dirá se a nova disposição de lei reduzirá os maus efeitos das execuções judiciais de liminares ou sentenças em ações possessórias nas quais a multidão pobre é ré. Parece fora de dúvida, porém, que os mandados judiciais poderão se inspirar num novo paradigma de interpretação da lei, excluída a ilusão de essa esgotar todo o direito e toda a justiça.

* Jacques Távora Alfonsin é procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.