“A promoção da Reforma Agrária não se dará por meio de publicação de quaisquer decretos, mas, no dia a dia, na luta social e política”

Coordenação nacional do MST e assessoria jurídica popular analisam os avanços e limites trazidos pela publicação do Decreto nº 8.738 que regulamenta o acesso à terra a beneficiários da Reforma Agrária.
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Francisco Dal Chiavon (à esquerda), e o advogado Renap, Diego Vedovatto à direita 

 

Por Lizely Borges
Da Página do MST

A presidência da República assinou no último dia 3 de maio, antes do golpe parlamentar, o Decreto nº 8.738 que dispõe sobre a seleção de famílias para o Programa Nacional de Reforma Agrária.

Embora trate de questões centrais no processo de Reforma Agrária, o que demandaria o envolvimento e diálogo com os movimentos campesinos, o Decreto foi elaborado sem a escuta ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Em entrevista, o membro da coordenação nacional do MST, Francisco Dal Chiavon (Chicão), e o advogado da Rede Nacional de Advogadas e Advogadas Populares (Renap), Diego Vedovatto, analisam o conteúdo do Decreto e pontuam que o ganho que ele pode trazer à luta pela terra depende da atuação dos órgãos controladores e dos Ministérios.

 

Que avanços o decreto traz para a efetivação da Reforma Agrária?

Vedovatto – Um dos principais pontos positivos do Decreto é mudar o status normativo que regulamenta o assentamento de famílias beneficiárias da reforma agrária. Um conjunto de legislações que estava esparso entre portarias e normativas no âmbito apenas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) agora alcança um patamar normativo de Decreto publicado pela Presidência da República e que estabelece institucionalmente, de forma clara e pública, a forma e os procedimentos como o assentamento das famílias vão ocorrer.

É importante destacar que o Decreto traz alguns conceitos que até então eram omissos na legislação, como por exemplo, o que é acampamento como sendo um conjunto de famílias em situação de vulnerabilidade social que demandam medidas do poder público para garantia dos seus direitos. Outra questão que o Decreto traz é a regulamentação do processo de titulação e formas como as famílias poderão ter a garantia do uso daquela terra. O Decreto regulamenta três modalidades: concessão de uso, realidade da maioria das famílias e que assegura direito à posse; a concessão de direito real de uso e o título de domínio.

Chicão – Ele é um documento que ajuda quem está na administração pública, no Incra. Agora para quem está na base não é um avanço. Um exemplo é a situação de famílias que se inscrevem para serem beneficiárias da reforma agrária e nem documento tem. Então é um documento que dialoga com a realidade do órgão e não com a realidade objetiva dos acampamentos, esclarece uma série de fatores, mas engessa o beneficiário. Um dos avanços que o Decreto traz é na definição da titularidade da propriedade da terra.

Isso é importante porque quando for fazer um assentamento o assentado tem que saber que título ele quer. Antes a concessão real de uso não era mencionada e isto agora ficou claro, o que impede que haja a venda de lotes. Há uma pressão nos assentamentos, principalmente em áreas mais adequadas à mecanização, para aluguel e venda dos lotes. O Decreto dá uma definição da impossibilidade de alugar o terreno à terceiros. Quem não quiser mais ficar no assentamento entrega o lote para Incra. Outro avanço é estabelecer como prioridade para quem estiver nos acampamentos pois a maior motivação é quem se manifesta e se organiza e não fica aguardando a reforma agrária em casa. 

O Decreto estabelece como prioridade a população mais vulnerável econômico e socialmente, contexto presente nas e nos integrantes dos movimentos sociais campesinos? Ele confere agilidade para o acesso à terra pelo povo ao estabelecer os critérios dos beneficiários pela Reforma Agrária?

Chicão – O acesso à terra ocorreu, historicamente, pela pressão do movimento social. O documento apenas classifica as formas de acesso à terra. Um problema criado com o Decreto dentro das organizações é que os acampamentos não são homogêneos. Quando um movimento social prioriza organização interna de um acampamento e não as condições de cada família, como nos casos de acampamento em que o grupo privilegia morar perto nos lotes do assentamento. A normatização facilita para quem é o executor, quem organiza na ponta do acampamento e não ao beneficiário. Assim o Incra se resguarda de ficar respondendo a acusações mas dificulta a organização na base.

Vedovatto – A intenção do Decreto deve ter sido facilitar o processo de reforma agrária. O que a gente precisa considerar é que a realidade da aplicação do texto previsto não é ideal. Temos um país com um conjunto de diferenças estaduais, regionais, institucionais e a regulamentação, da forma como foi feita, talvez dificulte que os órgãos responsáveis consigam, diante dessas diversidades, executarem o Programa de Reforma Agrária como prevê o Decreto.

Destaca-se que não houve significativa inovação nos critérios de seleção de famílias porque isso já era regulamentado internamente no Incra. Agora a preocupação que fica diz respeito às condições institucionais do Incra em executar esse Decreto. O texto legal, como todas as legislações, tem pontos positivos e negativos. A dificuldade é sobre sua efetivação. Como é um Decreto bastante recente há muitas dúvidas sobre como será aplicado, qual a interpretação do Judiciário e dos órgãos de controle.

 

Quais são os limites do Decreto? Que questões e garantias não estão presentes e deveriam estar?

Vedovatto – O que falta no texto são as pautas reivindicadas por movimentos populares que lutam pela Reforma Agrária e que não constam no Decreto, como por exemplo, a priorização de produtores de alimentos orgânicos que respeitem o meio ambiente. Não há previsão legal que priorize e incentive estas famílias, como também não menciona o incentivo à produção coletiva e agroindustrialização. Outra grave limitação é que há uma compreensão geral de que a reforma agrária serve exclusivamente à pessoas de muita baixa renda. O Decreto estabelece este limite tão baixo de renda e com isso afasta da possibilidade de ser beneficiário um conjunto de pessoas da classe trabalhadora.

Chicão – O Decreto não deixa claro quem é prioridade na reforma agrária é quem está no acampamento reivindicando a área. Faltou garantir a escuta às organizações de trabalhadores para auxílio na definição dos critérios de seleção, deveria ter abertura para os movimentos pelo órgão e reconhecer a organização interna na hora de beneficiar as famílias. Tem que ter critérios, é certo, mas tem que ter o elemento da organização dos trabalhadores para decidir questões que estão fora dos critérios. E outra limitação é a hora de aplicar o Decreto, a prática é o critério da verdade. Há muitos lugares que famílias alugaram terra para trabalhar, não tem terra e precisam dela para trabalhar, tem renda acima de três salários mínimos e pelo Decreto serão excluídos, não se enquadram nos critérios. Estreitou o acesso à terra. Outro ponto negativo é conceito de reforma agrária que restringe a ideia de distribuição de terra.

No início do Decreto há a menção a distribuição de terras com “acesso a políticas públicas para promover o desenvolvimento social e econômico das famílias”. O fato de não detalhar quais são estas políticas públicas, fundamentais à permanência das famílias no campo, é uma brecha possível à fragilização da Reforma Agrária?

Diego – O debate sobre limites e alcances do Decreto vai ocorrer na medida em que começar a ser aplicado. É difícil em termos abstratos, com pouco tempo de publicação, afirmar quais serão as interpretações dele decorrentes. Mas é importante destacar que vivemos um momento de intenso ataque ao Programa Nacional de Reforma Agrária pelas forças conservadoras, vista no ataque midiático aos assentamentos e acampamentos, por parte do Judiciário que em diversas ações judiciais decidem por bloquear o exercício das políticas públicas promovidas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Incra, e ainda pela existência da CPI do Incra e Funai que ao invés de analisar denúncias, constitui-se como espaço político de campanha contra indígenas, sem-terras e os camponeses. Salienta-se que é importante combater qualquer desvio de conduta e práticas de corrupção no processo de Reforma Agrária, mas isso não pode servir de justificativa para criminalizar o Programa.

Os órgãos de controle, principalmente o Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União precisam contribuir com MDA e o Incra para aprimorar os procedimentos de gestão e controle desta política pública, todavia, sem inviabilizá-lo. Se a gente fizer um paralelo com o Sistema Previdenciário, por exemplo, constatarmos que é certo que há irregularidades no pagamento de benefícios previdenciários no Brasil, mas, não é em virtude disso que a política pública da Previdência deva ser criminalizada e suspensa. A gente espera que tanto o Poder Judiciário quanto órgãos de controle atuem exclusivamente no controle de irregularidades e aprimoramento de procedimentos, e que esse aprimoramento não gere a inviabilização do Programa de Reforma Agrária tão importante para o país.

 

O Decreto pode servir como instrumento de pressão pelos movimentos sociais para a efetivação da reforma agrária neste contexto de levante de forças conservadoras e de criminalização das lutas sociais?

Chicão – Quando a gente olha a norma, a lei é sempre o Estado dificultando o poder do povo. Este Decreto restringe no acesso ao Programa de Reforma Agrária e o Estado não se compromete com nada – se torna um bom cobrador e mau pagador. É sempre mais fácil cobrar o cidadão do que servir a ele. Não se compromete de que se o cidadão fazer isso o Estado garantirá o acesso à terra. Agora este mesmo comportamento o Estado não faz na Câmara dos Deputados, há mais de cem deputados investigados pela Justiça, então vamos parar a Câmara. A norma se aplica aos mais fracos e o Estado é o grande responsável para criar as regras e as aplica em quem tem menos força política. Este Decreto vai na mesma direção

Vedovatto – É importante destacar que a Reforma Agrária não é prevista exclusivamente no Decreto. Diante de alta desigualdade econômica fruto inegável da histórica concentração fundiária no Brasil, pela luta dos movimentos sociais o dever de melhor divisão das terras restou previsto na Constituição Federal de 1988. Nos artigos 184 a 186 está declarado o dever dos Poderes da República em promoverem a Reforma Agrária. Acima do Decreto, vimos na Constituição Federal, nas Leis 8.629 e 13.001, dentre outras, a imposição ao Estado Brasileiro em promover a Reforma Agrária.

O Decreto se soma a estas disposições regulamentando os aspectos mais técnicos da seleção das famílias e o exercício da posse da terra pelos beneficiários. O Decreto será um instrumento de luta e diálogo com qualquer governo, mas sem sombra de dúvidas é a organização popular e o debate público que vão esclarecer a forma como o Decreto será aplicado. Nossa experiência institucional comprova que a promoção da reforma agrária não se dará por meio de publicação de quaisquer decretos, mas, no dia a dia, na luta social e política, no enfrentamento cotidiano aos latifundiários para a necessária divisão das terras em benefício do povo brasileiro.

Veja aqui o Decreto nº 8738

Veja aqui sobre o lançamento do Plano Safra da Agricultura Familiar (2016-2017)