Fogo, pistolagem e medo na fazenda 1.200 no Pará

Conflito de terra que se arrasta há 13 anos vive escalada de violência em 2019; famílias foram atacadas a tiros
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O agricultor Cláudio Araújo da Silva: “Hoje só ficou as cinzas e as fotos com as lembranças” / José Cícero da Silva

Por Ciro Barros
Da Pública

Sob o sol escaldante do verão amazônico, o agricultor Cláudio Araújo da Silva pisa nos escombros e nas cinzas de seu antigo barraco, localizado numa área ocupada da fazenda 1.200, em Ourilândia do Norte, sul do Pará.
 

Em maio deste ano, Cláudio e outras dez famílias da ocupação tiveram suas casas incendiadas na calada da noite. Segundo os relatos dos moradores ouvidos pela Pública, um grupo de quatro pessoas atirou em direção às residências antes de atear fogo. Cartuchos deflagrados de espingarda calibre .20 nas imediações de duas casas da ocupação foram encontrados pela reportagem.
 

O incêndio criminoso é o capítulo mais recente de um conflito agrário que se arrasta há 13 anos na fazenda 1.200, onde um grupo de cerca de 150 famílias da Associação 8 de Março, ligada à Fetagri-PA (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Pará), reivindica desde 2006 a criação de um assentamento de reforma agrária.
 

As famílias pedem inclusão num projeto de assentamento (PA) já criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra): o PA Luciana. Segundo análises do Incra, do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e do Ministério Público Federal (MPF), pouco mais de um quarto da fazenda – cerca de 1.500 dos 5.200 hectares da área – incide sobre as terras do PA Luciana, uma área pública pertencente à União. É nesse pedaço de chão que, desde 2017, os ocupantes montaram suas casas guiando-se por um mapa do próprio órgão agrário.
 

A Fazenda 1.200 ocupa mais de 5 mil hectares no sul do ParáParte da propriedade está em área pública, segundo Incra, Iterpa e MPFDesde 2006, há um conflito pelas terras da Fazenda 1200
 

As famílias sem terra ocupavam toda a área da fazenda, incluindo as particularesApós um despejo, em 2016, elas passaram a ocupar apenas a área pública dentro da propriedade, seguindo o mapeamento do Incra.
 

Cláudio se emociona ao retirar restos de seus pertences do chão de terra batida, agora coberto do carvão em que se transformou sua antiga casa. “Foi à noite, quem tava por aqui caiu na cacaia [matagal]. Tiro demais e os cara tacando fogo”, recorda.
 

Em meio a panelas retorcidas pelo fogo, uma garrafa térmica quase derretida, a armação de ferro de uma mala de roupas, Cláudio conta ter boas lembranças dos Natais em família. Ele mostra a coleção de fotos do local com amigos e familiares, que tem no celular. “Hoje em dia ficou só a cinza e as fotos”, lamenta.
 

No mês anterior ao incêndio, a ocupação havia sido palco de outro ataque. Na noite de 14 de abril, duas motos com quatro pistoleiros dispararam contra as residências de outras quatro famílias. A curta distância, sobre janelas e portas, o calibre dos projéteis eram os mesmos: espingarda .20, que dispara dezenas de balas de chumbo. “Eles atiraram aqui na minha janela. Me deu muito medo. Tirei a minha mulher com os meus meninos daqui”, diz o agricultor Antônio Alves Barbosa, de 56 anos. Os disparos ocorreram na janela logo acima da cama em que os três netos dormem. Antônio vive com o filho, a nora, a esposa e os três netos em dois cômodos em um lote de quatro alqueires. A energia elétrica vem de uma bateria de carro que liga apenas uma lâmpada. “Eu tava aqui dentro de casa, dormindo. Meus três meninos [netos] dormindo na cama de lá [abaixo da janela alvo dos tiros] e eu mais a mulher dormindo em outra cama. Acordei pelos tiros e os cachorros que começaram a latir. Eles atiraram, montaram na moto e fugiram. Eram umas duas motos e acho que umas quatro pessoas. Quando eu saí de casa, escutei eles pipocando [atirando] a casa do meu vizinho”, relembra Antônio. O agricultor diz que tirou os familiares da casa por um tempo e só não a abandonou completamente por receio de que ela também fosse queimada.

Fazendeiro nega, polícia investiga

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Agricultor Antônio Alves e os netos.
Foto: José Cícero

Os moradores da ocupação e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão ligado à Igreja Católica que acompanha conflitos agrários no país, suspeitam que tanto o episódio dos tiros quanto os incêndios estejam ligados ao fazendeiro capixaba Eutímio Lippaus, dono da fazenda ocupada. “A suspeita do atentado recai sobre o fazendeiro Eutímio Lippaus, que é o único que tem interesse em intimidar as famílias que continuam na luta pela criação de assentamento, tendo em vista que ocupam área pública reivindicada judicialmente pelo INCRA”, diz um trecho de nota divulgada em abril pela CPT de Tucumã, município vizinho a Ourilândia.
 

Os atentados ocorreram 11 dias antes de uma audiência judicial de desocupação da fazenda 1.200, realizada em decorrência da ação de reintegração de posse que Lippaus move contra os sem-terra.

Para os moradores, os episódios violentos ocorreram para pressionar a saída dos ocupantes. Na audiência, foi estipulado que os sem-terra deixassem o local até 10 de junho, mas a defesa dos ocupantes conseguiu suspender a decisão no Tribunal de Justiça paraense.
 

Procurado pela Pública, Lippaus negou qualquer participação nos episódios. “Aqui não se faz isso, não, isso é história desses bandidos. O dono aqui nunca fez disparo contra bandido nenhum, nunca queimou um barraco de um bandido sequer. Eles inventam tudo”, afirmou. “Aqui nunca ninguém mexeu num barraco desse povo”, garantiu o pecuarista.
 

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Restos de casa queimada na ocupação
da fazenda 1.200. Foto: José Cicero

Há um inquérito aberto na Deca (Delegacia de Conflitos Agrários), em Redenção (PA), para apurar os episódios. “Nos dirigimos até o local e constatamos que os crimes ocorreram. Em síntese: barracos queimados, que nós temos entendido aqui como dano qualificado. Também constatamos os disparos com arma de fogo: alguns transfixaram janelas e portas. O procedimento tramita em sigilo, mas toda a resposta tem sido dada com imparcialidade, isenção e toda a energia possível”, afirma o delegado titular da Deca, Antonio Mororó Júnior.
 

Com a suspensão da reintegração de posse, os ocupantes temem novos episódios de violência. “Assim que o juiz marcou a audiência de desocupação, as famílias sofreram um ataque, algumas casas foram alvejadas. Depois teve a audiência, ficou estipulado um prazo de 45 dias corridos para que as famílias saíssem voluntariamente da área. Uma semana depois da audiência, as famílias sofreram esse novo ataque: tiros contra as casas e os barracos queimados. A gente observa que cada vez que há um revigoramento da liminar de reintegração de posse há um novo ataque violento”, afirma Jamila Pereira de Carvalho, que integra o grupo de advogados da CPT que acompanha o caso.

De infração ambiental a denúncia de trabalho escravo

 

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Restos de um armário carbonizado na ocupação d
a fazenda 1.200. Foto: José Cícero

A primeira ocupação da fazenda 1.200 ocorreu em 2006. À época, Eutímio Lippaus enfrentava problemas na esfera trabalhista e ambiental por causa de uma fiscalização móvel feita em 2002 pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Polícia Federal, que resgatou 23 trabalhadores em condição análoga à de escravos, segundo a avaliação dos órgãos. Ouvidos pelo MPT, os trabalhadores contaram que um intermediador os recrutou em um hotel de Xinguara, município do sul do Pará, para trabalhar na fazenda de Lippaus.
 

Eles contaram aos órgãos responsáveis pela fiscalização ter sido alojados em barracos cobertos de lona de plástico preto, sem paredes, sem água potável ou banheiros. Dois trabalhadores disseram ainda que um chiqueiro inutilizado serviu de alojamento em suas primeiras noites na fazenda. Quando houve a fiscalização, Lippaus estava portando uma arma com o registro vencido.
 

O flagrante da equipe motivou uma ação judicial do MPT, proposta em janeiro de 2003. Nela, o órgão apontou, além das precárias condições de alojamento, a existência de endividamento ilegal dos funcionários. “Os trabalhadores pagam não só os equipamentos essenciais para realizarem o trabalho (foice, facão, botina) como também aqueles essenciais para a sobrevivência humana (rede de dormir, mantimentos – arroz, feijão, farinha, carne, lonas para barracas […]. E mais. Pagam pelos produtos citados acima preços superiores ao do mercado […]”, diz a ação do MPT, que também apontou ausência de pagamentos a funcionários – alguns receberam bebidas alcoólicas e cigarros como remuneração, o que é proibido pela lei trabalhista. “As irregularidades praticadas pelo requerido caracterizam sim como prática de trabalho forçado”, definiu o MPT, que pediu liminarmente na Justiça a penhora da fazenda de Lippaus.
 

Apesar de decisão judicial favorável, a penhora só não ocorreu porque o fazendeiro firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o órgão acusador em uma audiência conciliatória, em que pagou R$ 30 mil. Já na área ambiental, o Ibama havia multado a fazenda de Lippaus por desmatamento ilegal. Tais fatores levaram o Incra a abrir, em 2005, um processo de desapropriação da fazenda para fins de reforma agrária. A justificativa seria a falta de cumprimento da função social da propriedade. Pela Constituição, para uma fazenda cumprir sua função social, ela precisa, entre outras condições, estar adequada às leis trabalhistas e ambientais simultaneamente.
 

Apesar do TAC, o MPF denunciou criminalmente o fazendeiro por trabalho escravo, mas Lippaus foi absolvido da acusação na Justiça Federal tanto na primeira quanto na segunda instância. Na decisão de primeira instância, o juiz Marcelo Honorato, da 1ª Vara de Marabá, afirmou que “mesmo reconhecido que os trabalhadores estavam em condições degradantes de labor, ao tempo dos fatos, era atípica a conduta do réu, porque não existente a privação de liberdade e o completo estado de sujeição, que são marcas consagradoras da escravidão”. Na segunda instância, os juízes da quarta turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região entenderam que faltavam provas para a tipificação de trabalho escravo. Lippaus foi, porém, condenado por falsificar documentos trabalhistas dos agricultores da fazenda, mas a pena havia prescrito.

Morosidade na Justiça, violência na fazenda
 

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Casa de um dos ocupantes da fazenda 1.200.
Foto: José Cícero 

Raimundo Paulino da Silva Filho, uma das lideranças da ocupação afirmou à Pública que, diante dos problemas trabalhistas e ambientais e do pedido de penhora do imóvel, o fazendeiro Eutímio Lippaus convidou integrantes da Fetagri a ocupar a sua fazenda. Segundo Paulino, a manobra serviria para pleitear a compra da fazenda pelo Incra, o que renderia um valor em dinheiro maior do que se a fazenda fosse a leilão. Lippaus nega o episódio. “Isso aqui nunca houve, meu companheiro. Nunca se convidou ninguém aqui para ocupar área pra fazer bandalheira. Aqui se trabalha honestamente”, disse à reportagem.
 

Lippaus conseguiu posteriormente, por meio de um mandado de segurança, anular o processo de desapropriação. Além disso, moveu uma ação de interdito proibitório em 2006 que impede a violação de sua posse, mas os sem-terra não saíram do local.
 

Após 13 anos, o processo hoje convertido em uma ação de reintegração de posse desenrola-se da forma mais comum nos conflitos agrários no Brasil: morosidade nos tribunais e crescente violência em campo. De lado a lado, o que não falta são acusações de violência.
 

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Deuziana, antiga ocupante: “existiram diversas
situações de violência”. Foto: Agência Pública

O fazendeiro juntou ao processo 110 registros policiais referentes a episódios de violência que ele atribui aos sem-terra no período de ocupação. Às vezes, mais de um registro refere-se ao mesmo episódio. “Me sinto ameaçado todo dia. Um dia bateram em dois funcionários meus e queimaram uma caminhonete. Quando fizeram isso, disseram que queriam queimar a caminhonete comigo dentro”, diz. “Aqui não tem sem-terra. Tem bandidos. Já queimaram duas sedes em retiros, queimaram uma balança [usada para pesar os bois do fazendeiro] e queimaram uma sede antiga. Só não queimaram aqui onde eu estou [sede principal da fazenda] porque eu não saio daqui. Eu tô com 82 anos, é uma injustiça muito grande. Parece que nesse Brasil ninguém manda, até hoje tá desse jeito, sem ordem pra nada. Os sem-terra desmataram tudo, roubaram madeira, destruíram as áreas ambientais, a fazenda toda. E até hoje ninguém tomou providência de nada”, afirma Lippaus, que até hoje não conseguiu provar a autoria das denúncias. As acusações nos registros policiais vão desde queima de pastos, cercas e retiros, furto, queima de caminhonete e abate ilegal dos bois até ameaças de morte contra seus funcionários.
 

Quando os registros trazem nomes, um dos que mais aparecem é o do coordenador da Associação 8 de Março, Raimundo Paulino da Silva Filho, que, apesar de investigado, nunca foi condenado por nenhum crime na fazenda. “Nós [sem-terras] não temos nada a ver com essa situação dos crimes. De denúncia de gente que vem e arranca um quarto de boi e carrega, nós sabe é de muitos. O cara vem, mata o boi, arrasta por debaixo da cerca e carrega. Não tem nada a ver com os sem-terra. Roubam aqui, roubam nas outras fazendas. Tudo é os sem-terra? Não tem como ser”, afirma Paulino. Entre os documentos juntados por Lippaus ao processo, há duas prisões em flagrante – uma por roubo de gado e outra por porte ilegal de armas de fogo – neles, só há o depoimento de Lippaus afirmando que os presos eram sem-terra, mas a informação não é confirmada pelas autoridades. Uma das linhas de investigação da polícia inclui a participação do fazendeiro nos episódios mais recentes de violência, mas há também outros episódios desabonadores contra Lippaus.
 

Em 2010, o fazendeiro foi denunciado pelo Ministério Público do Pará por ameaças de morte contra o próprio Raimundo Paulino da Silva Filho. “Ameaças aqui teve sempre, principalmente contra a minha pessoa. Teve audiência pública que ele dizia que onde encontrasse comigo ia mandar me matar. Pessoalmente foram duas vezes. O resto era recado, gente passando aqui e falando que ia matar todo mundo”, afirma Paulino. A denúncia de 2010 contra Lippaus também prescreveu.
 

Em um Boletim de Ocorrência lavrado em janeiro de 2018, Paulino afirmou que ouviu de um vaqueiro de Lippaus que o fazendeiro traria uma escolta armada à fazenda e, quando cruzasse com ele, “criaria uma situação para matar o depoente [Paulino] e afirmar que foi legítima defesa”.
 

Antiga moradora da área, Deuziana Aparecida de Lima Silva afirma que existiram “diversas situações” de violência na comunidade. “Houve situações em que até crianças foram ameaçadas de morte. Teve um companheiro nosso que chegou a ser atirado numa estrada perto da fazenda. O pessoal da fazenda soltava os bois para comerem nossas plantações. E aconteceu muito de nós sermos denunciados por coisas que nós não fizemos”, conta. Também há registros policiais feitos pelos sem-terra denunciando a queima de casas em anos anteriores – incêndios, segundo os registros, que acusam uma escolta armada contratada pelo fazendeiro, o que também não foi provado.
 

A demora para a resolução da questão da posse da terra gera um terreno propício para a violência. “Quando você passa esse longo período sem o poder estatal se manifestar, isso fomenta o conflito. Na minha opinião, é indiscutível”, afirma Antonio Mororó Júnior, delegado da Deca.
 

Despejo, nova ocupação e o presente insolúvel
 

Os processos judiciais envolvendo a posse da fazenda 1.200 já sofreram diversas idas e vindas, mas a manifestação do Incra em 2014 mudou completamente a situação do caso.
 

O órgão federal de terras concluiu que a fazenda estava sobreposta a um antigo projeto de assentamento, o PA Luciana, criado em 1998, com uma área 103 mil hectares. Parte da fazenda 1.200 possuía títulos válidos, mas cerca de 1.500 dos 5.200 hectares da área estavam sobre área pública, segundo o Incra. Além disso, apontou-se também que a fazenda não cumpria sua função social por falta de atendimento aos parâmetros da legislação ambiental – não havia uma reserva legal de mata condizente com o tamanho do imóvel. O órgão federal afirmou também ser viável a criação de um assentamento no local – ou incorporação da área pública da fazenda ao PA Luciana – que poderia atender cerca de 140 famílias. Apesar da manifestação do Incra, o processo seguiu sem um desfecho. Em maio de 2014, a juíza Nilda Mara Jácome deferiu a reintegração de posse a favor do fazendeiro. “Denota-se que parte do imóvel é público, entretanto, existe uma situação consolidada, a ponto de outorgar direito à defesa da área a quem a está ocupando (…)”, escreveu na decisão. Após inúmeras contestações, o despejo das famílias foi cumprido em 2016. “Foi muito doloroso. Você ser escoltado pela polícia para tirar suas coisas, mas não ter nem tempo para isso. Eles fizeram em menos de 24 horas. As nossas coisas eram jogadas de qualquer jeito dentro de um caminhão. À medida que nossas coisas eram retiradas, um trator vinha e derrubava nossas casas”, relembra Deuziana com lágrimas nos olhos. As antigas casas de alvenaria da ocupação foram aterradas ali mesmo, na fazenda, onde até hoje é possível ver os restos de paredes e pisos de algumas delas.
 

Quando se manifestou no processo, o Iterpa também afirmou que parte da fazenda estava sobre área pública e o Ibama atestou que a área não cumpria os parâmetros de reserva legal previstos em lei.
 

Com a liminar deferida na esfera estadual, o Incra não demorou para ingressar com uma nova ação de reintegração de posse na Justiça Federal. Em sua defesa, o fazendeiro Eutímio Lippaus afirmou ter comprado títulos de antigos assentados do PA Luciana. O pecuarista apresentou, para sustentar suas afirmações, contratos de compra e venda e certidões de matrícula das áreas reivindicadas pelo Incra. A primeira decisão judicial na esfera federal foi contrária ao órgão, mas foi posteriormente anulada porque não foi dado ao MPF a oportunidade de se manifestar.
 

Quando falou no processo, o MPF se alinhou ao pedido do Incra. Para embasar seu posicionamento, o órgão realizou uma inspeção in loco na área. À época da visita do MPF, o despejo já havia ocorrido. No local, o MPF colheu os depoimentos de três fazendeiros – José Interlando Cabral de Almeida, Sanção Abreu Lourenço e Francival Cassiano do Rego –, que declararam que Lippaus estaria negociando a área pública de sua fazenda. Segundo o relatório do MPF, os produtores afirmaram que foram procurados por Lippaus depois de a ocupação dos sem-terra ter sido desfeita, em 2016. Os fazendeiros teriam fechado o negócio e, segundo declararam ao MPF, pagaram R$ 850 mil como entrada por uma área correspondente a 200 alqueires. Ainda segundo o MPF, Lippaus teria afirmado aos compradores não haver documentação de parte pública de sua fazenda, ao contrário do que sustenta na Justiça. O negócio foi desfeito após a descoberta da transação.
 

No fim de 2017, os sem-terra voltaram a ocupar a fazenda 1.200. Ao contrário da ocupação anterior, quando eles montaram suas casas sobre toda a fazenda de Lippaus, eles construíram o acampamento somente na área tida como pública, usando para isso os mapas apresentados pelo Incra nas ações judiciais nas esferas estadual e federal.
 

Em fevereiro do ano passado, porém, o juiz federal Pedro Maradei Neto deu decisão contrária ao pedido de liminar de reintegração de posse movido pelo Incra. O órgão recorreu da decisão, mas ainda não houve julgamento do mérito na segunda instância federal. Em novo parecer, o MPF voltou a se posicionar em favor do Incra. “Encontra-se documentalmente provada a propriedade e, portanto, a posse indireta, por parte do Incra”, diz um trecho do segundo parecer do MPF. O órgão contestou os documentos apresentados por Lippaus, realizou diligências em cartório e concluiu mais uma vez que a área é pública.
 

O processo na esfera estadual, que havia sido sobrestado (paralisado) até que houvesse decisão em esfera federal, voltou a andar. Em julho de 2018, o juiz Jun Kubota revigorou a liminar de reintegração de posse – opondo-se à manifestação de outro órgão, o Ministério Público Estadual, que também se alinhou aos órgãos de terra e ao MPF, concluindo que a área era pública e não era cabível a reintegração de posse a favor do fazendeiro. Em uma audiência em 25 de abril deste ano, ficou estipulada a desocupação voluntária da área pelos sem-terra. O prazo se encerraria no último dia 10 de junho, mas cinco dias antes a desembargadora Gleide Pereira de Moura determinou a suspensão da decisão. “Levando em consideração que a questão vertente se trata de posse de área rural, que vem sendo ocupada por diversas famílias há vários anos e que ainda é objeto de ação de reintegração de posse ajuizada pelo Incra […] e por se tratar de situação delicada, que pode ensejar conflitos e violência, por ora, entendo prudente conceder o pedido suspensivo almejado”, escreveu a magistrada. Após os tiros e os incêndios criminosos ocorridos entre abril e maio deste ano, os sem-terra vivem sob o medo constante de novos ataques.
 

Outro lado
 

A reportagem da Pública procurou o atual advogado de Eutímio Lippaus, Joel Carvalho Lobato, por WhatsApp e telefone pedindo uma entrevista, que não ocorreu. Em rápido contato pelo telefone, Lobato afirmou que não havia conflito recente na fazenda. “Lá teve situação forjada por sem-terra, eles forjando situação para criar factoide. É um senhor de 82 anos de idade, que vive sozinho numa casa”, disse. “Ele nunca deu um tiro em ninguém, tem 13 anos que ele convive com essa situação de invasão. Não teve conflito nenhum. O que tem todos os dias é o rebanho bovino dele sendo atirado”, diz, também referindo-se a outros episódios de violência que ele atribui aos sem-terra. O advogado pediu que as perguntas da reportagem fossem enviadas por escrito, mas não houve resposta às questões até a publicação.
 

[A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei que investiga violência relacionada à regularização fundiária, demarcação de terras e reforma agrária na Amazônia Legal]
 

Edição: Agência Pública