Crônica dos Dias de Urgência

Encontro no Paraná reúne natureza, poesia, arte e cultura no assentamento do Contestado (PR)
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Encontro de Artistas, Arte-Educadores e Produtores Culturais da Região Metropolitana de Curitiba. Foto: Ton Cabano

Por Coletivo Ariranha Eco Rede Media Lab
Da Página do MST

Assentamento Contestado, Sábado, 12 de Outubro de 2019.

João Cabral de Melo Neto escreveu um poema que poderia ser bordado com linhas de costura das cores do arco-íris no tecido desse texto. O poema é este:
 

Tecendo a Manhã
 

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.
 

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.
 

Reivindicado muitos vezes pelos movimentos sociais como um poema-emblema da luta política por justiça social e vida digna, plena, o poema de João Cabral precisa ser atualizado. Falta incluir no alarido dos galos tecendo a manhã, o chilrear das gralhas e das ararinhas azuis, das saíras, dos diversos tipos de beija-flores, do pica-pau de cabeça amarela, do vermelho vivo do tiê-sangue, dos tucanos de bico-verde, dos sabiás, do João-de-barro, do azulado tiziu, das corujas-buraqueiras, da rendeira, dos periquitos e das maritacas, dos pardaizinhos e papa-moscas do quintal, dos queros-queros, da jacutinga, do inhambu, da curicaca dos banhados a planar nas alturas, dos jacanãs, dos irerês, e quiçás, do arredio e veloz macuquinho-do-brejo, ameaçado de extinção pelos ideais de Progresso. Aves nativas ou apenas sobrevoando a região da Lapa, onde a implantação do sistema de cultivo agroecológico realizado pelo coletivo de famílias de agricultores do assentamento Contestado do MST, uma referência mundial em agroecologia, com uma variedade de árvores frutíferas em desenvolvimento e a preservação de remanescentes da floresta da mata atlântica nas proximidades e margens do curso do Rio Iguaçu, têm atraído essa maravilha inumerável de cantos e cores da fauna brasileira. Esse recanto da natureza, distante apenas 70 Km da capital do Paraná, com uma variedade de tons de verdes florestais, formou neste sábado – dia das crianças e de celebração da festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil – um belo dossel de sonhos sobre as cabeças de um coletivo de artistas, arte-educadores e produtores culturais da região metropolitana de Curitiba que reunidos debaixo das árvores foram apresentados ao projeto do Centro Cultural Casarão, uma antiga e imponente construção rudimentar de “Casa-Grande” do período colonial, adaptada e convertida em um ponto nodal de irradiação de Arte e Cultura do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – para o mundo. Esse encontro teve o objetivo de formar uma rede de apoio, de colaboração e de gestão compartilhada do Centro Cultural Casarão – nestes tempos de urgência e resistência política e afetiva. Este foi o primeiro grande encontro de rede – articulado em parceria com a Casa da Resistência em Curitiba – entre artistas e educadores para formulação de um projeto comum e solidário no campo da cultura enquanto extensão de ações do MST em parceria com outros coletivos. Estas ramificações crescerão como os miscélios, como as orquídeas, como os frutos da araucária. 

 

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Foto: Ton Cabano

Se acrescentamos antes um “porém” ao poema de João Cabral de Melo Neto, é porque a metáfora viva do galo já não nos basta para compor a grande cifra da diversidade que abriga agora todas as lutas sociais, de resistência política e de afirmação afetiva formada principalmente pela presença combativa do gênero feminino. E neste primeiro encontro de articulação da rede de arte-educadores prevaleceu a presença e os enunciados afetivos e políticos das mulheres. Mulheres-cerâmistas, mulheres-desenhistas, mulheres-pintoras, mulheres-bailarinas, mulheres-escritoras, mulheres-da-cena-dramática, mulheres-compositoras, multi-instrumentistas, mulheres-cantoras. Ou simplesmente, o ser mulher em toda a sua plenitude para a geração da vida – com seus filhos e filhas. As mulheres são as verdadeiras tecelãs dessa nosssa tenda do Amanhã. Porém, o Amanhã é exatamente Agora. E é formado por uma tenda de asas e plumas coloridas de mil aves cantoras.
 

Esse encontro afetivo e político para formulação de um política cultural comunitária do Centro Cultural Casarão foi ainda prestigiado por duas apresentações artísticas programadas especialmente para este dia de intenso calor sob o equinócio da primavera (como se já fosse a chegada abrupta do solstício de verão): 

A cantora e compositora Raíssa Fayet apresentou as emblemáticas canções da trilogia “Zoiúda”, um conjunto de canções situadas entre o protesto político e a manifestação poética performática feita de sons e cores que evocam as forças espirituais da Natureza em conexão principalmente com as mulheres, com o ser feminino. A canção “Zoiúda” expressa essa conexão com sagrado da terra, com as medicinas da floresta e o chamados da cura pela Mãe-Natureza. O clipe de lançamento foi gravado na Ilha do Mel no Paraná com a participação e integração das mulheres da comunidade da Ilha e também no Parque Nacional de Vila Velha, com todo o gestual traduzido em poesia-sinalizada em libras sob a forma de simbolismos rituais que remetem aos Orixás da cultura afro-brasileira. Veja o clipe: 

 

O bailarino Yiuki Doi apresentou ao ar livre a performance “O vôo das bandeiras”, uma experiência integrada dos princípios da agricultura sintrópica com a arte da dança. Estabelecendo uma relação direta com a paisagem e evocando por uma partitura de gestos, movimentos e deslocamentos no espaço do jardim enfrente ao Centro Cultural Casarão, os elementos da composição de poemas hai-kais de sua origem japonesa, o bailarino Yiuki Doi dançou a simbologia das lutas do MST, fazendo flanar ao vento, a bandeira vermelha que desde a Comuna de Paris (1871) é o emblema das lutas sociais por terra, justiça e pão. No calor das lutas sociais, o carvão da pintura sumiê se transforma nas brasas acesas que a bandeira vermelha evoca sob o signo geométrico do infinito, em movimento contínuo. Na ampulheta do tempo, como a flor de lótus que brota da lama, a arte é um diamante bruto muito mais valioso, exatamente por se originar do negrume do carvão que “pinta” o corpo do bailarino. A dança sintrópica de Yiuki Doi é a modulação de uma dramaturgia do corpo cuja escritura é completada pela imaginação e sensibilidade da platéia que vislumbra um entendimento sensível de suas próprias paisagens internas – como se elas mesmas estivessem escrevendo – ou pintando – ideogramas. Ideogramas das lutas individuais, sociais e sagradas – por terra, arte e pão. 
 

No interior do Centro Cultural Casarão, com a exposição fotográfica “Olhar ancestral: memória e cultura quilombola” (impressa em tecido e elevada ao teto), a fotógrafa Izabelle Neri Vicentini, retratou e atualizou a presença de mulheres, filhos, filhas, netos e netas descendentes de remanescentes afro-brasileiros que viveram na região da Lapa sob o regime do trabalho escravo.
 

Para muitos, ao sul do corpo do mapa do Brasil, a palavra “Contestado” remete à uma vaga lembrança de uma guerra ocorrida nos limites entre o Paraná e Santa Catarina. Há quem, ao lembrar da “Guerra do Contestado”, recorde-se da “Guerra de Canudos”. Há semelhanças e diferenças entre os dois episódios históricos sangrentos. Uma linha mística messiânica também atravessa o território do “Contestado”, com os aparecimentos milagrosos do Santo Monge João, na rota das lutas camponesas por terra, justiça e pão. Mas o “Constestado” de agora, a palavra inscrita nesta crônica dos dias de urgência, refere-se tão somente a um porção de terras conquistadas pelas lutas da Reforma Agrária empreendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, na região da Lapa, cercanias do município de Balsa Nova e de Araucária, aproximadamente 70 km da capital do Paraná. As terras atualmente desapropriadas para a reforma agrária, antes pertencentes ao Barão dos Campos Gerais, e em seguida à Empresa Ceramista Incepa, compreendem e abrigam agora um conjunto de instituições e de ações políticas sociais sob a bandeira flamejante da Agroecologia: uma cooperativa de processamento e beneficiamento de alimentos produzidos pelas famílias de agricultores que abastecem o mercado de produtos orgânicos de Curitiba e região, escolas estaduais e municipais pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e ainda a rota paranaense de produtos agroecológicos; uma ciranda de educação infantil; uma escola municipal de ensino fundamental; uma escola de ensino médio estadual integrada como educação para o campo; um centro de saúde municipal que integra processos terapêuticos holísticos; uma escola técnica de nível superior em formação agroecológica, a prestigiada Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA) com formação de alunos e alunas oriundos de todo o continente latino-americano e mesmo da América Central, em uma iniciativa da Via Campesina em parceria com o Instituto Federal do Paraná (IFPR), além de duas licenciaturas em convênio com a UFPR-Litoral, uma em Ciências da Natureza e outra em Educação para o Campo. Esse amplo espectro de ações políticas sociais e ambientais e instituições públicas que lhes concedem estrutura e desenvolvimento, se constitui numa das maiores referências em ensino-aprendizagem da Agroecologia e do sistema de cultivo integrado da Agrofloresta. Soma-se a este complexo inter e transdisciplinar de difusão dos princípios culturais e valores éticos e políticos da Agroecologia, o programa de ação cultural do Centro Cultural Casarão. 

 

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si:

com a luz multiplicada e expandida pelas asas do coração.