Terra prometida ocupada: depoimentos

Continuação do especial os 34 anos da Fazenda Annoni

 

Por Jeison Karnal
Da Página do MST**

 

Esta é a segunda parte do especial Fazenda Annoni, 34 anos. Confira a primeira parte do texto aqui 
 

Isaías Vedovatto, assentado da Annoni, o homem que cortou a cerca
 

“Fui eu que cortei a cerca da entrada da fazenda naquela noite. Na década de 80 tinha uma crise econômica, no interior do país era muito forte, com Ditadura Militar. O êxodo rural era muito forte, a agricultura não ia bem. Tempo de surgimento das organizações na sociedade. Havia mobilização popular, mesmo com o cenário de Ditadura. Na igreja havia uma visão progressista das comunidades eclesiásticas de base. Sindicatos, luta pela terra.

Experiências em assentamentos, criando núcleos e coordenações municipais por dois anos, reuniões com governo, audiências, sem sucesso. A decisão foi ocupar o grande latifúndio da região. Fizemos uma preparação como faria, de como se organizaria no acampamento, uma comissão para falar com a imprensa, de negociação, organizar saúde, higiene, montar barracos, processo de segurança, barracos por núcleos de municípios (que se conheciam para evitar infiltrados). Como faria para chegar no local? Definimos dois pontos os caminhos na madrugada do 29, com sinais, como identificar os caminhões nossos e seguir junto. Uma da manhã a gente se encontrava, duas horas saímos de lá em comboio para a ocupação. Passado tanto tempo, é difícil descrever o que era o nosso estado de emoção, ansiedade, insegurança e incerteza. Desde que as pessoas carregaram os caminhões até a ocupação… Clareou, já estávamos cercado pela PM. Depois de dois dias a Justiça decretou Status Quo (ante), e a quantidade de gente era maior que muitas cidades do interior. Significa que permaneceríamos aqui. Organizava-se o lugar da água, um lugar só, não tinha nascente. A gente via os horários das mulheres tomar banho, e dos homens, num riacho só. Teve uma disciplina cooperativa de 7,5 mil pessoas. a PM eixou barreira nas entradas e saídas. E tínhamos nosso controle com senhas. Sobreviveu o acampamento graças a igrejas, até padres foram lá, e começou a negociação com as autoridades.”

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Foto: Paulo Pires

“Hoje na Fazenda Annoni (Pontão, antes vinculado à Sarandi) existem 422 famílias assentadas, organizadas em seis comunidades. Todas elas estão estruturadas. É incomparável a condição de vida de antes e o padrão de agora. O que era a Annoni antes com 700 cabeças de gado para 9,3 mil hectares? Isso também mudou, a produtividade… Temos na fazenda hoje duas cooperativas ligadas ao MST com leite (produção de alimentos, indústria com capacidade de 20 mil litros dia, faz queijo e bebidas lácteas) recolhe hoje em torno de 500 mil litros de leite ao mês. Cinco empresas recolhem leite dali. Tem feijão, horta, a Cooperlat (fornece leite para escolas de 23 municípios). Outra cooperativa tem frigorífico com capacidade de abate de 6 mil suínos e mil bovinos mês (e embutidos). Famílias que produzem lavoura diversificada, mais soja e milho (também em escala grande). Todos tem água encanada, luz elétrica, estrada boa com acesso, infra social, isso é muito importante. Foi o Assentamento da Annoni que permitiu criar o município de Pontão, graças ao desenvolvimento gerado pelo nosso assentamento. Grande mídia não mostra, só mostra a história que se vendeu lotes no RS, tentado desmoralizar. Isso ocorreu, sim… mas, das 422 famílias, 17 venderam os lotes, segundo dados oficiais do Incra (e foi vendinha para para outros pequenos). Não dá para cair nesta conversa, de que não funciona. Cuidamos dos aspecto sociais, tem ginásio de esportes, cultura, conjunto de atividades, todos vivem bem.” Isaías Vedovatto
 

POEMA DE “SEM-TERRA”
 

O SONHO E A ESPERANÇA MARCHAM SOBRE O LATIFÚNDIO (Isaías Vedovatto)

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Eram milhares de homens, mulheres e crianças tomados por este sonho.
Muita gente identificada pela mesma causa: A FALTA DE TERRA.

Há dois anos se organizando nos municípios, formando grupos nas comunidades. Organização sigilosa, porque o inimigo mais temido, a repressão militar, ainda rondava sobre quem quisesse se organizar.
 

Cada vez que levantávamos os olhos enxergávamos o latifúndio bem ali, escondendo o pão que nos faltava e estava tão perto, quando nos espremia.
Era preciso que nossa união fizesse com que a coragem vencesse o medo.
 

Três sinais de luz para identificar quem era companheiro. Ramos verdes nas encruzilhadas sinalizando que o latifúndio de 9.300 ha era pra lá.
 

Era noite de 29 de outubro de 1985, terça feira, lua cheia, parecia estar mais brilhosa, talvez porque a estrada principal de terra vermelha causasse reflexos, ou talvez porque as lágrimas de angústia, nervosismo e alegria ajudassem a aumentar seu brilho.
 

Ao sair de casa o coração apertava e batia mais forte. Pais e amigos ajudavam a carregar as tralhas. Muitos deram força e coragem, muitos não sabiam o que dizer, mas com certeza os que não embarcavam viviam a mesma sensação.
 

Os primeiros que chegaram nos horários e locais combinados. O tom de voz se confundia com o silencio da noite e o ruído de pequenos animais. Quanto mais gente chegava mais nossa voz se levantava e nossa coragem aumentava.
 

Ao longe avistamos uma luz do carro da polícia que vinha piscando pelo mesmo caminho. O silencio é imediato. O carro passa e nem percebe a multidão silenciosa, com os caminhões desligados fora da estrada principal.
 

A tensão aumentava, muitos começam a rezar baixinho, outros choram, outros tentam dar coragem, mas ninguém falou: Vamos voltar.
 

Com o grito VAMOS EM FRENTE os motores dos caminhões voltaram a roncar em forma de comboio, seu ronco é o único som que se escuta. Muitos debaixo da lona não conseguem enxergar a quantidade de luzes enfileiradas, formando uma linda imagem em contraste com aquela estrada e o luar.
 

Ao chegar no latifúndio, o zunido dos cinco fios de arame sendo cortados, era como se fosse o ponteado do início de uma música que toma coro com o grito desprendido na garganta de todos, ao som das foices e facões, martelos nas construção dos barracos de lona preta, formando o Acampamento da Fazenda Annoni.
 

* Fotos de Paulo Pires e texto de Jeison Karnal ([email protected])

-Fotos históricas de arquivo cedidas pelo MST: fotógrafos Karine Emerich e José Leal

-Edição de Rodrigo Becker