Mônica Mourão, do Intervozes, fala sobre o direito à comunicação no Brasil

Aproveitando o mês em que o Brasil debate a democratização da comunicação, o MST entrevista Mônica Mourão, conselheira da direção do coletivo Intervozes
Mônica Mourão, do Conselho Diretor do Intervozes: “o direito à comunicação é capaz de influenciar todos os outros direitos” (Foto: Arquivo pessoal)

Por Ludmilla Balduino
Da página do MST

Outubro é tradicionalmente o mês em que todo o Brasil mobiliza-se para debater a democratização da comunicação. Em 2020, mesmo com pandemia, não foi diferente. Este ano – em que análises de conjuntura jogam cada vez mais luz na evidente conexão entre as empresas proprietárias dos meios de comunicação no Brasil com a retirada de direitos humanos e com a ascensão do neofascismo –, a Semana Nacional de Democratização da Comunicação ocorreu de 11 a 17 de outubro, com mobilizações em todo o Brasil.

Para o MST, a semana foi de celebração: comemoramos o aniversário de 20 anos do Setor de Comunicação, relembrando as conquistas do passado e planejando as ações para os próximos 20 anos. Também entrevistamos Mônica Mourão, do Conselho Diretor do Intervozes, sobre a urgência em defendermos a democratização da comunicação neste momento.

Mônica falou sobre a situação atual, em que ativistas da comunicação estão em um momento de trabalho que consiste, na maior parte do tempo, em apagar incêndios.

Para a conselheira do Intervozes, vivemos em um período na política nacional de extrema dificuldade em eleger uma pauta prioritária factível, como já foi possível no passado. No fim de 2009, por exemplo, ocorreu a primeira Conferência Nacional de Comunicação, que  finalmente inaugurou o debate público sobre as políticas do setor da comunicação no Brasil. Hoje, com o esvaziamento do discurso e disseminação das fake news (que o Intervozes denomina como desinformação), uma conferência dessa magnitude é algo impensável.

Mônica afirma que o momento é de intensificar o trabalho no sentido de evitar que ocorram retrocessos em relação às leis nacionais sobre comunicação. Especialmente agora, com os algoritmos das redes sociais direcionando os conteúdos de forma individual.

Leia a entrevista na íntegra:

MST – Por que é importante defender a comunicação?

Mônica – O direito fundamental à liberdade de expressão consta no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas do ponto de vista do Intervozes, a gente prefere usar o termo “direito à comunicação”. Isso porque a gente entende que muitas vezes a liberdade de expressão é tratada como um direito individual, uma questão de cada pessoa falar o que quiser. A gente não pode tratar o tema dessa maneira, é preciso olhar para a comunicação de uma forma mais ampla. O direito à comunicação é um conceito que surgiu pela primeira vez nos anos 1970, foi se cristalizando em debates na Unesco e se tornou mais conhecido através do relatório “Um Mundo, Muitas Vozes”, também conhecido como Relatório McBride, nos anos 1980.

Esse relatório retira a ideia de liberdade de expressão a partir de um âmbito individual e aponta esse ideal de liberdade de expressão para a sociedade e para os proprietários dos meios de comunicação. Para a gente chegar a ter uma real liberdade de expressão, é preciso entender toda essa lógica da propriedade dos meios, entender quem está autorizado a falar, quem consegue se comunicar a uma grande quantidade de pessoas. São os grandes meios que tem recursos financeiros, tecnológicos e humanos para difundir os seus conteúdos para uma grande quantidade de pessoas. E quando a gente pensa na propriedade dos meios, entendemos que ainda temos desafios enormes. Com a internet, alguns grupos defendem uma ideia de que a comunicação já está democratizada, mas na verdade, o que existe é uma reprodução muito grande das estruturas concentradas de mídia, e isso também acontece na internet.

Como acontece a reprodução dessas estruturas da grande mídia no Brasil?

Em 2017, o Intervozes divulgou uma pesquisa feita em parceria com os Repórteres sem Fronteiras, chamada MOMBrasil. Essa pesquisa verificou que os 50 veículos de comunicação em todos os meios com maior audiência no Brasil fazem parte de apenas 26 grupos. Se por um lado, temos uma concentração midiática da radiodifusão e dos veículos tradicionais do Brasil, no sentido de poucos empresários serem donos da maioria dos veículos de maior audiência, por outro, temos conglomerados internacionais na internet, como o Facebook, o Twitter, o Instagram. O Intervozes fez outra pesquisa chamada Monopólios Digitais, que fala sobre essa falta de domínio sobre o conteúdo que aparece para cada usuário, e o que pode ou não pode ser publicado na internet.

Temos um exemplo recente, o da Sara Winter, que divulgou os dados da criança de 10 anos do Espírito Santo que estava autorizada pela justiça a fazer um aborto por ter sido estuprada pelo tio. Ela vazou os dados da menina no Twitter, o que gerou uma mobilização na porta do hospital para impedi-la de fazer o aborto legal, mas só depois disso que a justiça determinou que os dados pessoais da garota fossem deletados das redes.

Qual é a prioridade atual da luta pela comunicação popular brasileira?

Vivemos um momento em que é muito difícil eleger uma pauta prioritária que seja algo factível, como já aconteceu em alguns momentos mais democráticos da comunicação no Brasil. Hoje, não é possível conquistar direitos importantes em termos de legislação da comunicação, já que essas questões são de âmbito federal e envolvem ações dos poderes Legislativo ou Executivo. É difícil pensar num avanço que dependa dessas esferas nesse momento. Estamos em um trabalho de apagar incêndios e tentar fazer com que alguns projetos de lei que surjam sejam discutidos e trabalhados para que a gente não passe por retrocessos.

Mas acredito ser necessário priorizar o debate sobre a democratização dos meios de comunicação. Precisamos que mais grupos da sociedade tenham acesso aos meios de comunicação, e a partir daí, debater como promover esse acesso: como garantir a liberdade de expressão; como garantir o direito à comunicação de forma que não viole outros direitos; e como garantir que o conteúdo difundido não viole os direitos humanos (como a gente vê comumente essa violação nos programas policialescos, que inclusive passam em horários que crianças assistem).

E os desafios da luta pelo direito à comunicação na internet?

Ainda existe no Brasil uma dificuldade de acesso à internet. De acordo com dados da última pesquisa Tic Domicílios, embora o acesso esteja aumentando, 85% das pessoas de classes D e E usam internet apenas pelo celular. Qual o impacto disso? Em geral, quando acaba o pacote de dados, a pessoa não tem mais o acesso ou só tem acesso àqueles aplicativos “gratuitos”, que a gente entende que estão violando a neutralidade de rede, que é um dos pilares do marco civil da internet (uma lei de 2014 que rege a internet no Brasil). Tivemos recentemente aprovada a Lei Geral de Proteção de Dados, e agora é preciso batalhar para uma autoridade de proteção de dados que realmente faça o trabalho. Precisamos garantir propriedade democrática dos meios, conteúdos que respeitem os direitos humanos, o acesso livre à internet e a garantia de privacidade dos nossos dados.

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Como o direito à comunicação pode influenciar na valorização ou na privação dos direitos humanos?

O direito à comunicação é fundamental quando a gente pensa no quanto ele é capaz de influenciar todos os outros direitos. Voltando ao exemplo do caso dessa criança de 10 anos que fez um aborto legalizado por ter sido estuprada pelo tio, o fato de a Sara Winter ter exposto os dados da criança parece ser um ato garantido pelo direito à liberdade de expressão, mas não é! Temos que lembrar que a liberdade de expressão, assim como todos os outros direitos humanos, faz parte de um sistema de direitos e um não pode se sobrepor a outro. A partir do momento em que existe um abuso do que parece ser a liberdade de expressão, nos deparamos com um caso em que a comunicação está servindo para violar direitos de crianças e adolescentes.

Além disso, a dificuldade de acesso a informações sobre aborto legal no Brasil faz com que várias mulheres adultas, autônomas, que sofreram violência sexual e deveriam ter direito ao aborto legal, não saberem como proceder. Outro caso recente é do ataque organizado pela ministra Damares Alves à revista AzMina, que publicou uma matéria sobre o aborto legal. A matéria fornecia informações verídicas e estava praticando o direito à comunicação, mas foi atacado e saiu do ar. As jornalistas foram perseguidas, e o caso inclusive foi levado para uma audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no começo desse ano, no Haiti. No fim das contas, a falta de acesso à informação acaba por violar outros direitos. 

Como o Intervozes analisa a questão da disseminação das fakenews no Brasil?

O que muita gente tem chamado de fakenews, a gente prefere usar o nome “desinformação”, porque o Intervozes entende que nem sempre os conteúdos desinformativos são publicados no formato de notícias. E também porque tratar como notícia falsa nem sempre é exatamente falsa. Muitas vezes é algo descontextualizado. Um caso mais recente foi a própria secretaria de comunicação da presidência da República divulgar dados errados sobre as queimadas. O que a gente percebe é uma falta de respeito às informações corretas, e a informação errada influenciando no debate público sobre o tema, gerando diferentes entendimentos sobre as queimadas.

O Intervozes tem um podcast chamado Levante a sua Voz, e o episódio mais recente foi sobre isso. Uma militante do nosso coletivo, a Camila Nóbrega, falou sobre a dificuldade de acesso a informações, mesmo com a Lei de Acesso à Informação. Se a gente não consegue ter acesso a dados sobre queimadas, sobre desmatamento, como é que vamos divulgar adequadamente esses dados? O direito à comunicação é fundamental porque ele atravessa vários outros direitos. Direito à comunicação se trata também de acessar informações e de poder difundir ideias e valores baseadas nessas informações para uma grande quantidade de pessoas.

Qual o papel da comunicação no processo democrático do Brasil?

Para responder a essa pergunta, precisamos falar sobre a concentração dos meios de comunicação no país e como ela tem afetado a comunicação democrática. O Brasil tem poucos grupos de comunicação, e eles são os proprietários da maioria dos veículos de maior audiência. Além disso, embora existam diferenças e disputas internas no jornalismo desses veículos – profissionais que fazem o tensionamento para divulgar fatos com outros olhares–, temos, a grosso modo, uma mídia no Brasil que está ligada ao agronegócio, às igrejas e a outros setores com interesses políticos e econômicos.

Também acontece no Brasil o fenômeno dos políticos que são donos de mídia. São os próprios parlamentares que aprovam ou não as concessões de rádio e TV, e eles não poderiam se beneficiar com algo que eles mesmos aprovam. E isso acontece, além da falta de acesso dos demais grupos. Onde a gente vê, por exemplo, as pautas do MST circulando amplamente? Justamente por conta dessa concentração dos meios em grupos políticos e empresariais é muito difícil para os movimentos sociais e para os grupos marginalizados da sociedade conseguir influenciar o debate público, influenciar as ideias e valores em relação a temas que vão impactar nos interesses políticos e econômicos dos grandes veículos.

Então quais são as consequências dessa falta de acesso à comunicação por parte dos movimentos sociais?

Vou pegar como exemplo o caso do MST. Em 2011, o Intervozes lançou uma pesquisa chamada Vozes Silenciadas. Nela, concluímos que a maioria das matérias sobre o MST coloca o movimento como um agente de violência. Mesmo em matérias sobre o Abril Vermelho, que é uma jornada de manifestações para lembrar e denunciar o massacre de Eldorado dos Carajás. Ainda assim, as matérias noticiavam que o MST “invadiu” alguma propriedade por conta do Abril Vermelho, e não explicavam que se tratava de uma ação para lembrar uma violência que o movimento sofreu.

Até hoje, percebo em conversas com algumas pessoas que não são de movimentos sociais, uma ideia muito forte de que o MST é violento. Isso não condiz com a realidade, quando o fato é que o MST tem um arroz superpremiado, que está mantendo o preço apesar dessa alta, e que o MST vem fazendo um trabalho de doação de alimentos nesse momento gravíssimo de pandemia, por exemplo. Mas como você faz essa disputa se os grandes veículos são ligados a grupos de agronegócio? Para que a sociedade seja democrática, a gente vai precisar que as ideias e valores do MST estejam em condições de disputa com as ideias e os valores do agronegócio.

Vamos falar de utopia: como seria um Brasil em que a população tenha domínio sobre uma comunicação livre e democrática?

Ela precisa ter participação social, não dá pra gente simplesmente ligar ou desligar a TV ou acessar informações por meio de aplicativos e ficar satisfeitos com isso. A gente precisa ter condições de interferir democraticamente nas políticas públicas de comunicação. Dizer, por exemplo, que certo conteúdo violento não pode passar em certo horário. Defender a necessidade do cumprimento de editais públicos para fomentar a comunicação popular e comunitária. Pensar também numa sociedade em que a gente ligue a TV e assista a conteúdos de grupos indígenas que produzem audiovisual, e que grupos quilombolas possam ter acesso à internet e criar seus conteúdos, e que tudo isso circule mais amplamente e livremente por todo o mundo. Assim a gente poderia ter uma sociedade em que muitas vozes aparecem na esfera pública, e que assim circulem diferentes ideias e valores, todas respeitando os direitos humanos. Que os grupos marginalizados na sociedade não sejam marginalizados na esfera midiática, o que – já que é para pensar na utopia – significaria uma sociedade mais igualitária. Uma comunicação sem racismo, uma comunicação sem violência de gênero: esse é o sonho.

*Editado por Fernanda Alcântara