Governo Genocida

Em um país sem governo, quem manda é o coronavírus

Com o Brasil oficialmente como epicentro da da pandemia no mundo, artigo traz análise sobre a crise do país e possíveis caminhos de resistência
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, conversa com jornalistas após visita ao Comando da Aeronáutica,em Brasília. Foto: Agência Brasil

Por Jean Marc von der Weid
Da Carta Maior

No pior dos mundos:

A OMS indica que o Brasil é o país com a pior performance na luta contra a pandemia
. Brasil-il-il é o campeão em vários indicadores da gravidade da pandemia sendo que a responsabilidade do governo federal é apontada como a principal causa deste insucesso. Vale a pena recapitular como chegamos a esta situação.

Quando explode a pandemia em fevereiro e março de 2020 a contaminação nos chegou de avião e não foi da China. Enquanto o governo federal fazia uma operação resgate de brasileiros morando em Wuhan, foco inicial da pandemia, usando rígidos critérios de segregação não só dos repatriados como também de todos os que participaram do processo (pilotos, médicos, enfermeiros) centenas de milhares de turistas regressavam ao país vindos da Europa ou dos Estados Unidos, onde já circulava o vírus de forma exponencial. A palhaçada governamental evitou que uma ou duas dezenas de brasileiros vindos da China contaminassem um só dos nativos enquanto o vírus se espalhava a partir dos viajantes de retorno, atacando parentes e amigos que logo começaram a adoecer e encher os hospitais privados com gente de classe média ou da alta rapioca. Mas estes alegres viajantes também contaminaram gente de outras classes sociais, as empregadas domésticas que logo levaram o vírus para seus lares e comunidades e para os transportes públicos superlotados onde o vírus se espalhou via aglomeração. Logo começaram a chegar os doentes às portas dos postos de saúde e os hospitais do SUS.

O ministro da saúde, Mandetta, declarou que os testes recomendados pela OMS como estratégia fundamental para controlar a disseminação da pandemia não estavam disponíveis na quantidade necessária e que seriam usados apenas em quem tinha sintomas claros e se apresentava nos hospitais e postos de saúde. Ou seja, rastrear os possíveis vetores de disseminação do vírus para isolá-los foi uma tática fundamental abandonada desde o princípio da pandemia. O Brasil é um dos países que menos testou para covid, limitando-se a usar esta prática (de forma precária e parcial) para confirmar ou não os casos que se apresentavam. Esta é a razão para que tenhamos um índice de subnotificação da ordem de 6 vezes o número de casos oficialmente confirmados. Em outras palavras, o número de contaminados no Brasil pode ser da ordem de 55 milhões de casos, mais do que em qualquer outro lugar do mundo. A subnotificação nos óbitos também é grande embora menor, já que parte significativa das mortes se dá nos hospitais. Mesmo assim a estimativa é de que há entre 40% e 100% de óbitos a mais em relação aos números oficiais, ou seja, estamos possivelmente com 450 mil mortos pela covid, um quase recorde mundial, só superado pelos Estados Unidos, país com uma população quase 70% maior do que a nossa.

De cara, o presidente Bolsonaro adotou uma postura de minimizar o problema (“gripezinha”, entre outras expressões) e apostou na chamada imunidade de rebanho, ou seja, deixar a pandemia seguir seu curso natural até contaminar 70% da população e se esgotar naturalmente. Em outras palavras, Bolsonaro era favorável a uma rápida expansão da pandemia para que pudéssemos nos livrar do problema sem delongas. Mandetta revelou que informou ao presidente que isto levaria a um número de óbitos da ordem de 1 a 4 milhões em um ano e uma total implosão tanto do SUS como do sistema hospitalar privado. Segundo o agora ex-ministro da saúde o presidente não se comoveu com estes dados e continuou a usar o argumento de que “todos temos que morrer um dia” e que não adianta ser “maricas” ou ter “medinho” da covid. Ou seja, para o presidente alguns milhões de mortos eram um efeito colateral aceitável para controlar a pandemia. Sabendo-se que a covid atacou inicialmente muito mais idosos do que jovens estas mortes podiam até ter um efeito positivo nas contas do governo, pela redução dos valores a serem pagos em pensões e aposentadorias.

As recomendações da OMS em favor do isolamento social em suas várias formas foram aplicadas e continuam sendo aplicadas, com maior ou menor radicalidade na Europa, inclusive com vários e longos lockdowns. Os chineses trancaram todo mundo em casa em Wuhan, isolaram a província e só aliviaram paulatinamente este lockdown rígido quando os números da contaminação caíram a quase zero. Nos exemplos da Alemanha, Itália, França, Espanha, Portugal e Inglaterra e outros países europeus, quanto menos rigoroso o isolamento menos eficiente o controle da pandemia, maiores os números de óbitos e mais prolongado o esforço de combate à covid. Não aprendemos nada com estas experiências. Bolsonaro tentou impedir que governos estaduais ou municipais pudessem adotar medidas não aprovadas pelo governo federal para controlar a pandemia. No caso a questão era exatamente a aplicação dos lockdowns e o STF deliberou pela autonomia dos Estados e Municípios para tomarem medidas de controle sanitário que julgassem necessárias. Bolsonaro passou a lavar as mãos e a simplesmente comunicar à população que a responsabilidade do combate à covid era de outros poderes e não do governo federal. Já neste momento Bolsonaro iniciava a sua campanha pelo uso de cloroquina como cura para a covid, apesar de insistentes manifestações de cientistas de todo o mundo sobre a total ausência de evidências do efeito deste medicamento para este fim. Investimentos exponenciais foram feitos e milhões de doses distribuídas pelo governo federal. A resposta do governo para os lockdowns e mesmo o mero uso de máscaras era a “cura” pela cloroquina (depois também a ivermectina, igualmente inócua).

Além de não apoiar as medidas recomendadas pela OMS, Bolsonaro as sabotou, por palavras, atos e omissões. A pressão sobre o ministério da saúde para que a cloroquina fosse recomendada oficialmente acabou levando à demissão de dois ministros, Mandetta e Teich, que se recusaram a fazê-lo. A nomeação do atual ministro, general Pazuello, totalmente submisso ao capitão presidente, permitiu que a cloroquina virasse um remédio assumido oficialmente pelo MS e recomendado para a população e para os serviços médicos.

Qual a razão da fúria bolsonarista contra os lockdowns e outras formas menos radicais de distanciamento social? Para Bolsonaro e seu ministro da economia, Paulo Guedes, existe uma escolha a ser feita entre controlar a pandemia ou animar a economia. Mandar todo mundo para casa significa dar um forte baque nas atividades econômicas com as consequências de aumento de desemprego, diminuição de renda, desinvestimento e endividamento. Em outras palavras, uma forte recessão. Bolsonaro quer ser candidato à reeleição em 2022 e teme os efeitos desta recessão para sua performance eleitoral. Ao adotar uma ostensiva posição contrária ao isolamento social e acusar os governadores e prefeitos de quebrar a economia, Bolsonaro está trabalhando a sua candidatura, ocultando a sua responsabilidade com as crises sanitária e econômica e jogando-as no colo dos seus “inimigos”.

Bolsonaro não queria, e Guedes menos ainda, pagar o que se chamou de ajuda extraordinária. Sob pressão, chegaram a sugerir um pagamento de 200,00 reais mensais por três meses e para um público de 30 milhões, mas sequer chegaram a propor um projeto de lei. A Câmara e o Senado propuseram uma lei com uma ajuda mensal de 500,00 reais por seis meses e para 70 milhões de brasileiros mais necessitados. Frente a uma evidente derrota por unanimidade ou quase no Congresso, Bolsonaro aumentou o valor da ajuda para 600,00 reais para não se lembrarem de como tinha sido mesquinho no começo deste debate.

Não é demais lembrar a importância desta ajuda para o combate à covid. Sem ela qualquer medida de isolamento mais rigoroso seria inaplicável pois sem renda dezenas de milhões de brasileiros não poderiam ficar em casa pela necessidade de buscar ganhar de que, pelo menos, comprar comida. Para a parte mais pobre dos beneficiários da ajuda extraordinária, o valor recebido era mais do que auferiam em suas precárias formas de subsistência. Mas para outra parte, bastante significativa, 600 reais não era suficiente para cobrir gastos de comida, aluguel, transporte, saúde e outros. Isto levou muita gente a continuar “na rua”, batalhando um complemento de renda para cobrir as despesas que a ajuda extraordinária não cobriu.

A distribuição dos recursos da ajuda extraordinária foi um caos e parecia proposital para sabotar o combate à covid. Filas e aglomerações nas portas das agências da Caixa Econômica Federal contrariaram as orientações de isolamento durante meses, para alegria do vírus incontrolado. Por outro lado, não se tomaram medidas fundamentais para permitir que os moradores de periferias e favelas respeitassem as orientações de isolamento. Mesmo com os recursos da ajuda extraordinária estes cidadãos tiveram que sair do isolamento para comprar alimentos e outros produtos essenciais. Parece que os poderes públicos acharam que estas pessoas podiam fazer as compras pelo telefone e que esquemas de delivery as levariam até às suas portas. Por uma razão ou por outra o isolamento social foi seguido a meias pela população e implantado também a meias pelos poderes públicos. Apesar disso estas medidas e o uso de máscaras (também, literalmente, de meia boca) acabaram contendo a evolução da pandemia, muito embora em um patamar alto de contaminação.

Com o arrefecimento do avanço da pandemia a pressão dos empresários dos setores de comércio e dos serviços pela suspensão das medidas de isolamento se acirrou e, com as eleições municipais ameaçando os prefeitos e governadores, estes acabaram capitulando. Com exceção do setor de ensino ou o de espetáculos (shows, teatros, cinemas, museus, esportes) todos os outros setores da economia voltaram ao “normal”. As ruas foram tomadas por ambulantes, como antes da pandemia. Mas o vírus continuou em expansão e aproveitou o relaxamento das festas de fim de ano e do carnaval (apesar da suspensão oficial) para dar um novo avanço.

A posição contra o isolamento social de Bolsonaro tem explicação, como vimos, embora não se justifique, mas não há explicação para a sua oposição ao uso de máscaras e mais ainda, para as vacinas. Mesmo o idiota mor que servia de modelo para Bolsonaro, Donald Trump, embora negacionista de primeira hora e defensor de cloroquina, apostou pesadamente no investimento em vacinas como o meio mais seguro e rápido para controlar a pandemia. Bolsonaro não só não tomou nenhuma iniciativa para promover a produção nacional de vacinas como não fez qualquer movimento para reservar doses de vacina para o povo brasileiro. A iniciativa dos acordos dos laboratórios públicos Butantan com a empresa estatal chinesa Coronavac e Fiocruz com a universidade de Oxford e a empresa AstraZeneca não foi do ministério da Saúde. Foram os ditos laboratórios que procuraram estas parcerias. O Butantan com recursos do governo de São Paulo e a Fiocruz com recursos do ministério de Ciência e Tecnologia. Ameaçado com os avanços da produção da vacina chinesa Bolsonaro criou todo tipo de hostilidade à iniciativa do governo de São Paulo, desde acusar os chineses de criar a pandemia para derrubar a economia ocidental até festejar um suposto problema nos testes da vacina no Brasil. Bolsonaro passou a tratar a vacina como sendo “do Dória”, seu inimigo político, e recusou-se a confirmar uma compra anunciada por seu ministro da Saúde. Depois de se colocar em uma situação onde a única vacina disponível no fim do ano era a produzida por seu adversário a politização da vacinação se exacerbou, mas porque não se tomaram medidas para garantir o acesso em meados do ano passado ou mesmo no final do ano quando isto ainda era possível? Naquela altura Bolsonaro achava que a pandemia estava já acabando e talvez desprezasse a necessidade das vacinas. Era uma posição absurda e contrariando todas as evidências em todo o mundo, mas não se deve menosprezar a capacidade do presidente em cometer idiotices e insistir nas mesmas.

Seja qual for a razão ou a desrazão de Bolsonaro o fato é que o problema de falta de vacinas continua presente, agora agravado pelo fato de que o governo não se preparou minimamente para aplicar as vacinas quando elas aparecerem. Faltam agulhas, seringas e outros materiais básicos para aplicar em massa e rapidamente as vacinas. Falta um plano de vacinação. O que o ministério da Saúde apresentou, arrancado a fórceps por ordem do STF, foi apelidado de Plano Tabajara, copiando a piada do Casseta e Planeta. Na verdade, não há plano qualquer, apenas uma definição de mega prioridades que não funciona porque há poucas vacinas, insuficientes para a primeira delas: profissionais da saúde, idosos acima de 85 anos, indígenas aldeados e idosos vivendo em abrigos coletivos. As vacinas disponíveis eram insuficientes para vacinar os profissionais da saúde que se encontram na “linha de frente” do combate à covid, ou seja, os que trabalham em contato direto com os doentes. Esta foi a definição de prioridade da prioridade feita por algumas prefeituras e as vacinas disponíveis só cobririam 1/3 desta prioridade. A distribuição das vacinas por estados e municípios foi na base da proporção da população total e não a população prioritária. Assim, faltam vacinas em muitos municípios e sobram em alguns. Profissionais da saúde sem qualquer vínculo com o combate à covid se vacinaram nesta primeira leva enquanto maqueiros, motoristas de ambulâncias, fisioterapeutas e outros ficaram de fora. O plano desconsidera o grau de gravidade da situação de cada lugar, exceção feita à cidade de Manaus e isto por sugestão dos governadores de todos os estados. Para completar o caos acumulam-se as denúncias de “fura filas” de todo tipo e desvios de vacinas para pessoas fora da lista de prioridades.

Bolsonaro continua criando dificuldades para a vacinação. Foi praticamente obrigado a aceitar a compra das doses da coronavac produzidas pelo Instituto Butantã, mas até agora o Ministério da Saúde não efetivou a compra. No momento ele parece se preparar para transformar o general Pazuelo em bode expiatório de seus próprios e brutais erros no combate ao coronavirus e a entregar o Ministério da Saúde a uma eminência qualquer do Centrão. As suas atitudes mostram uma total falta de lógica no que concerne a sua única preocupação: sua reeleição no ano que vem. A posição da população em relação à vacina está se transformando, de alívio com o início da execução do plano em revolta com o caos em que ela acontece. Isto é muito ruim para a popularidade do presidente, que vem caindo de forma acelerada desde o fim da ajuda emergencial. Hoje são menos de 20% os que dizem que não querem se vacinar, o menor percentual desde o começo destas pesquisas. Estes são os “bolsonaristas raís”, também chamados de “gado”, os incondicionais do energúmeno. Ficar implicando com a vacinação, minimizando a sua necessidade e desqualificando uma ou outra vacina está se tornando mais do que impopular para virar algo revoltante, até para os seguidores menos fanáticos do “mito”.

Para finalizar este balanço devemos constatar que estamos no pior dos mundos. Há poucas vacinas e uma enorme incapacidade de ter uma política de vacinação racional que debele a evolução acelerada da pandemia que já está batendo o recorde de casos e de óbitos por semana, ocorrido no auge de julho do ano passado. A experiência de outros países mostra que enquanto não se vacina uma alta porcentagem da população a expansão da covid em casos e óbitos continua exigindo o isolamento social e lockdowns para prevenir a implosão dos serviços de saúde e ainda mais óbitos e casos. Aqui o isolamento social simplesmente não pega. Os prefeitos e governadores tem medo de promovê-los e ficarem sob pressão dos empresários. A juventude não aceita restringir os seus prazeres mesmo ao preço do risco de morte que ou não é enxergado ou é simplesmente aceito como um dado da realidade, tal como afirma o presidente. Ou seja, teremos um ano de enorme aceleração da pandemia. Até onde chegaremos antes que a ficha caia? Ao milhão de mortos? Ao colapso dos hospitais privados e do SUS nas grandes metrópoles do sudeste/sul? Teremos uma revolta da vacina ao contrário da de um século atrás, ou seja, pelo direito a ser vacinado?

Para completar esta análise do pior dos mundos temos que registrar o aumento dos riscos da pandemia no Brasil pelo surgimento de uma variante autóctone do coronavirus nomeada como P.1. A cepa surgida em Manaus não foi uma casualidade azarada para os manauaras. Ela surgiu exatamente porque a contaminação da primeira onda tinha sido tão grande em Manaus a ponto de se achar que tinham chegado na famosa “imunidade de rebanho”. Não era o caso e a ciência demonstra que exatamente por esta situação e a continuidade das contaminações favoreceu-se a formação de uma variante mais agressiva e mais letal. Esta nova onda já se mostrou muito mais perigosa para nós e para o mundo, a ponto de hoje estarmos sendo tratados como um grande lazareto, de onde os empesteados estão proibidos de sair. São poucos e cada vez menos os países que aceitam voos vindos do Brasil e em muitos estão sendo checados os recém chegados de qualquer lugar para ver se não estiveram antes no nosso país.

Agora que temos um coronavirus para chamar do nosso a perspectiva é de um colapso dos sistemas de saúde público e privado marcado para se generalizar nas próximas semanas. A gravidade desta ameaça é muito maior do que no ano passado pois como a contaminação já alcança todo o país a implosão dos sistemas de saúde estaduais será simultânea. Ela já está ocorrendo em pelo menos 8 estados e perto de 20 estão na beira do abismo, com taxas de ocupação de UTIs acima de 90% e filas de doentes esperando um leito crescendo dia a dia. Estamos batendo todos os recordes de contaminação e de óbitos a cada dia que passa. A expectativa é de que sem um lockdown nacional imediato teremos em dois meses mais óbitos e casos do que em todo o ano passado. Estamos a caminho de um milhão de mortos este ano se nada for feito para travar a pandemia. Enquanto isso Bolsonaro continua desmoralizando o uso de máscaras e o isolamento social e acusando os governadores e prefeitos pelo caos sanitário.

Embora a questão da pandemia seja o eixo definidor da realidade sócio econômica e política do país vivemos como se ela já estivesse equacionada e as festas e aglomerações que teimosamente se multiplicaram neste simulacro de carnaval de 2021 provam esta verdade. Os políticos de todos as pelagens estão se voltando para as eleições de 2022 e discutindo quem serão os candidatos contra Jair Bolsonaro. Com a situação da pandemia em plena evolução ameaçadora esta atitude não poderia ser mais errada. A esquerda em particular está completamente sem bússola e sem norte.

A crise alimentar

Em meio ao caos da pandemia em aceleração está ficando na sombra uma outra crise que é tão ou mais ampla que a da covid embora seja menos letal no curto prazo. O preço dos produtos alimentares está em crescimento acelerado desde meados do ano passado. Arroz, feijão, óleo de soja, batata, tomate, farinha de mandioca, entre outros produtos estão encarecendo continuamente e alguns já dobraram seus valores nos últimos meses. O efeito inflacionário já começa a cobrar um aumento da taxa SELIG por parte do Banco Central, agora fora do controle do governo federal por voto do Congresso. Estes aumentos têm como efeito imediato a perda de capacidade aquisitiva da ajuda emergencial, sabendo-se que ela vai ser reduzida para uma média de 250,00 reais com um máximo de 375,00 reais. De cara, a redução a menos da metade dos valores desta ajuda, imposta pelo ministro Paulo Guedes, já teria enorme efeito de retração na alimentação dos mais pobres, mas com o aumento dos preços dos alimentos esta retração será ainda maior. Isto fará com que, mesmo se decretado um lockdown nacional muitos dos mais pobres (que Guedes chamou de invisíveis embora sejam mais do que um quarto da população) vão ter que driblar o isolamento para tentar ganhar algum dinheiro que complemente a ajuda. Isto já aconteceu no ano passado, mas agora serão muitos mais os que terão que tomar esta atitude, para alegria do coronavirus com aumentos de casos de contaminação, internações e óbitos.

O problema maior desta crise alimentar é que ela não se resolve apenas com o aumento dos valores da ajuda emergencial. O fato é que a produção nacional de gêneros alimentares de base é insuficiente para garantir o consumo de toda a população e os mais carentes pagarão com o aumento da fome e da desnutrição.

Mas porque não importar mais alimentos para garantir o abastecimento? Não é tão simples. Os preços nos mercados internacionais para o arroz, por exemplo, estão até acima dos nacionais, mesmo com as altas recentes. Já o feijão não é uma commodity com cotação na bolsa de Chicago e poucos são os países que exportam este produto, também com valores em alta em qualquer lugar.

Por que não produzir mais alimentos? Teremos que fazê-lo, mas também não teremos solução de curto prazo. Bolsonaro destruiu as políticas de apoio à agricultura familiar e seria necessário retomar de imediato pelo menos algumas delas, mas o fato é que a tendência à queda da produção de alimentos de base não vem de hoje. Desde que as exportações do agronegócio se tornaram a âncora intocável da balança de pagamentos do Brasil e que os programas de apoio aos agricultores familiares estimularam a adoção do pacote tecnológico da revolução verde (adubos químicos, sementes híbridas ou transgênicas, agrotóxicos e maquinário) ficou mais interessante para grandes, médios e muitos pequenos agricultores o plantio de soja e milho para exportação, em detrimento do arroz com feijão. Este movimento começou com o governo Fernando Henrique, mas prosseguiu e se acelerou com os governos de Lula e de Dilma. Não era a intenção dos governos populares, mas foi o efeito de suas políticas. Hoje vai ser preciso oferecer crédito barato e fácil para a produção de alimentos, mas sem o estímulo ao uso do caríssimo pacote tecnológico. A única resposta vai ser montar um programa acelerado de transição para a produção agroecológica, mas não podemos ter a ilusão de que isto vai ter efeito imediato. Enquanto o efeito estratégico de uma produção sustentável não acontece qualquer produção alimentar, seja qual for a base tecnológica utilizada, terá que ser estimulada. E para isso, será preciso garantir preços remunerativos para que os agricultores familiares que aderiram ao agronegocinho não continuem presos na produção de commodities de exportação. O governo federal vai ter que subsidiar esta produção para garantir esta remuneração em competição com as exportações do agronegócio e um dos fatores mais importantes vai ser a garantia de compra pelo governo. Não vão ser nem os criadores de gado ou os grileiros amigos de Bolsonaro que vão assumir esta tarefa fundamental para a sobrevivência da população. Só a agricultura familiar pode cumprir esta função, sobretudo a que não aderiu ao agronegocinho e seus produtos de exportação.

Sem resolver este quebra cabeça do abastecimento alimentar a preços acessíveis pela grande massa da população nada pode evitar a catástrofe que se anuncia com a ampliação explosiva da fome. Lembremos que a covid mata centenas de milhares de brasileiros e matará milhões se Bolsonaro não for afastado e uma política de controle da pandemia assumida por um conselho de salvação nacional, mas a fome é algo que atinge muito mais gente. O covid é um risco de vida elevado para alguns milhões de brasileiros, mas a fome é uma certeza afetando o quotidiano de dezenas de milhões no quadro que está sendo pintado.

Balanço das forças econômico-sociais e políticas

Desde a posse do presidente Bolsonaro vivemos uma crise por semana ou mais. Seria demasiado extenso recordá-las todas, mas citemos as ambientais, com o aumento brutal do desmatamento e das queimadas não só na Amazônia como em todos os biomas do país, com ênfase no Cerrado e no Pantanal, mas também na Caatinga e na Mata Atlântica. Lembremos ainda a poluição das praias do nordeste por vazamentos de óleo até hoje sem explicação.

As crises nas relações internacionais tiveram relação com as questões ambientais, mas também com idiossincrasias ideológicas de Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores; ataques à Cuba, Venezuela e, em outra dimensão de gravidade, à China, nosso maior parceiro comercial. Soma-se a isso a submissão total a Donald Trump, ao arrepio dos interesses comerciais do Brasil. A aposta em Trump foi exacerbada ao ponto do governo brasileiro se somar às forças golpistas que tentaram melar a transmissão de poder dos republicanos para os democratas nos Estados Unidos.

Entre as medidas tomadas pelo presidente uma das mais intrigantes e perigosas foi a liberação do armamento dos chamados CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), que está se ampliando de forma absurda para possibilitar a compra de 60 armas por pessoa! E com amplo acesso a munição. O número de novos proprietários de armas de fogo se multiplicou por dois a três em dois anos e já são centenas de milhares, em geral organizados nos clubes de tiro e formando uma milícia bolsonarista que o presidente se propõe a usar em uma crise.

Poderíamos seguir falando no desmonte das universidades e do nosso capital intelectual acumulado na área de ciência e tecnologia, ou da única das reformas neoliberais prometidas por Guedes a chegar a ser votada no congresso. A reforma da previdência foi aprovada por iniciativa e habilidade do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a despeito dos arreganhos tanto de Bolsonaro como de Guedes, muitas vezes um contra o outro. A reforma ferrou os ferrados e foi generosa com os já muito beneficiados. Em particular ela foi mui amiga dos militares, garantindo a simpatia deste segmento sempre presente no jogo político de Bolsonaro.

Mas entre todas as crises provocadas pelo presidente nenhuma foi mais perigosa ou estressante que as ameaças às instituições da república, à constituição e à democracia. Coerente com sua vocação ditatorial e autoritária Bolsonaro provocou tanto o STF como o Congresso, mobilizando os seus bolsominions para atacar as instituições da República, buscando comprometer as forças armadas neste jogo de enfrentamento que tanto podia terminar no emparedamento e intimidação dos outros poderes ou na sua supressão, numa hipótese mais extrema.

O jogo de Bolsonaro foi quebrado por três fatores importantes: 1) o STF ou pelo menos o ministro Alexandre de Morais, não se deixou intimidar e partiu para a ofensiva contra os bolsominions mais agressivos e, 2) a Polícia Federal, ainda não controlada por Bolsonaro, prendeu o Queirós e deixou a família muito vulnerável aos inquéritos que os perseguem de perto. 3) Bolsonaro não conseguiu levar os oficiais generais da ativa a se comprometerem com mais do que algumas notas de críticas ou reclamações. Na defensiva o tenentinho travestido de capitão e agora comandante geral das forças armadas por seu cargo de presidente da República, largou seus militantes virtuais ou presenciais no buraco e foi buscar abrigo em um acordo com o Centrão para impedir que prospere algum dos hoje sessenta ou mais pedidos de impeachment. Neste processo o Congresso teve um papel pífio e tímido para não dizer intimidado, até que o STF pagou para ver e os generais não botaram os brucutus na rua.

Com a pandemia mandando no quotidiano dos brasileiros em todos os rincões do país a política moveu-se em outra direção e os partidos foram cuidar das eleições municipais já de olho nas presidenciais de 2022.

As eleições mostraram algumas coisas para quem quer ver. A primeira é que as forças da direita cresceram muito sobretudo em municípios médios e pequenos, com avanços do Centrâo (ou direitão, para ser mais preciso) e mesmo da extrema direita bolsonarista. Foram muito exploradas as derrotas dos candidatos com apoio direto de Bolsonaro, mas isto é um desgaste que não chega a afetar sua base de apoio, já que seus parceiros políticos cresceram. É ruim para ele por dar mostras de sua dependência da chamada “velha política” e sua falta de base política orgânica, mas não é mais do que isso.

A segunda lição foi o isolamento e fragilização dos partidos de centro esquerda e de esquerda. Atuando quase sempre em ordem dispersa PDT, PSB, Rede, PCdoB, PT e PSOL conquistaram poucas prefeituras embora o PSOL tenha mostrado o potencial de uma aliança mais progressista em São Paulo. O PT cantou vitória por ter tido um número de votos ligeiramente superior aos da eleição municipal anterior, quando literalmente desabou, mas isto é conversa para boi dormir. Ao perder em todas as capitais de Estados e na maior parte das prefeituras grandes e médias o resultado, no mínimo, mostra que a sangria pode ter estancado, mas o anti-petismo continua forte. Já os outros partidos citados tiveram fortes diminuições nos números de votos e eleitos, com exceção do PSOL, mas este partia de um patamar muito baixo para compensar os resultados inexpressivos do conjunto.

Curiosamente, a pandemia não foi o tema central das eleições municipais, muito embora seja a questão mais importante na vida dos brasileiros. Talvez por isso os índices de votos nulos, brancos e abstenções tenham sido tão importantes, entre 1/3 e 1/2 dos votos expressos nas urnas. Cabe perguntar sobre as razões desta decisão dos candidatos, mas não tenho qualquer palpite para explicar este mistério.

Intriga a todo analista a extraordinária resiliência da popularidade de Bolsonaro. Antes da pandemia ele estava, aparentemente, nas cordas, com índices de aprovação abaixo de 30% e em alguns momentos mais para 20%. Como pode ter melhorado sua popularidade com a incrível estupidez com que tratou o combate à pandemia? Há duas explicações: uma foi a ajuda emergencial que ele conseguiu capitalizar para si embora tenha sido contrário à mesma, ou pelo menos ao seu alcance. Os mais pobres viraram apoiadores do “doador” da ajuda. Com quase 80 milhões na lista dos ajudados o potencial de apoio é grande. Mas não foi só isso. A oposição de Bolsonaro ao isolamento social, em particular qualquer medida mais dura de lockdown, encontrou ressonância em muitos desses pobres para quem a ajuda não era suficiente e que precisavam trabalhar para completar o orçamento familiar. Os milhões de trabalhadores por conta própria, biscateiros, ambulantes e até os pedintes, precisam circular e de gente circulando para poder ganhar alguma coisa. Somam-se a eles os pequenos negociantes, duramente atingidos pela recessão e para quem as promessas de crédito fácil e barato de Guedes foram apenas palavras ao vento. De quebra, a juventude rica ou pobre parece que decidiu adotar o desafio bolsonarista ao vírus e aceitar os riscos para si e, de forma mais desumana, para seus familiares mais velhos. Nunca se aglomerou tanto em festas fora dos agitos consagrados como o carnaval e o coronavirus agradeceu contaminando mais e mais gente.

Bolsonaro, portanto, segue com um apoio significativo, apesar de estar com este apoio em declínio com o fim da ajuda emergencial. O fiasco da vacinação e todas as tergiversações de Bolsonaro nas compras de vacinas também estão minando o apoio do energúmeno. A explosão de casos novos e de óbitos nos coloca na pior situação desde o começo da pandemia e o tão temido (e evitado no ano passado) colapso do SUS e do sistema hospitalar privado está acontecendo em vários Estados começando com a crise de Manaus.

Que outros apoios têm Bolsonaro? Saindo das pesquisas de opinião para o comportamento de vários setores da sociedade constatamos que Bolsonaro tem um suporte firme nos pequenos e médios empresários ou empreendedores apesar do total fiasco da distribuição do crédito para este setor. Os bancos criaram dificuldades de todo tipo e o acesso dos necessitados foi ridículo. Já o crédito para grandes empresas bombou e os bancos correram atrás oferecendo montes de grana com todas as facilidades. Porque os PME continuam apoiando o seu algoz? Bolsonaro diz que fez a sua parte disponibilizando o crédito e joga o fiasco para os bancos, mas o governo poderia ter pressionado ou tomado medidas para que sua política desse certo. Parece que a posição anti-isolamento social de Bolsonaro é tudo que estes empresários veem e esperam.

Os grandes empresários estão convencidos que é preciso derrubar a pandemia para recuperar a economia e, por outro lado, estão vendo que Bolsonaro e Guedes estão sendo incapazes de entregar o que prometeram, ou seja, as chamadas reformas liberais e as privatizações. As medidas recentes de intervenção de Bolsonaro na Petrobras acabaram de desmoralizar o discurso liberal do governo e deixaram o mercado em polvorosa. Não é só o efeito específico na Petrobras, mas o efeito dominó da desconfiança na postura do governo.

Entre estes grandes empresários há diferenças importantes. Os do agronegócio estão divididos entre os exportadores preocupados com os conflitos gerados pelas posturas da política de relações internacionais de Bolsonaro e as ameaças de reação da China, União Europeia e Estados Unido, seja por agressões idiotas à primeira, seja pela condenação dos outros às agressões ao meio ambiente no Brasil. Já os empresários de menor porte e sem relações com o mercado internacional estão batendo palmas para as piores políticas do governo Bolsonaro, a desconstrução da defesa do meio ambiente e a suspensão da reforma agrária, a liberação da grilagem e a ocupação de terras de indígenas e quilombolas. Entre os grandes empresários, que eu apelidei de donos do PIB, os relacionados com empreendimentos industriais estão vendo o circo pegar fogo com a recessão contínua (pibinho de 1% em 2019 e queda de 4,1% em 2020) e a fuga dos capitais multinacionais. Estão torcendo pela substituição de Bolsonaro por Mourão, mas sem ação frente ao desmonte do país. Já não tem confiança, se jamais tiveram alguma, nas promessas de Guedes em liberalizar a economia. Afinal, a única reforma entregue pelo governo Bolsonaro foi a da previdência, que ferrou os ferrados e privilegiou os privilegiados sem resolver nada da crise que o crescimento dos pagamentos do Estado anunciam há tempos. O poderosíssimo setor financeiro, que continua faturando alto em plena pandemia e o pandemônio da gestão do Estado por Bolsonaro, agora está em pânico com o intervencionismo do presidente, mas teme um movimento de substituição do energúmeno por impeachment ou interdição que trouxesse de volta a esquerda e o PT. Estes preferem esperar as eleições de 2022 para ver se emplacam o Dória ou outro liberal “autêntico”.

A mídia convencional, jornais e televisões, está em guerra contra Bolsonaro, exceção feita aos canais evangélicos. É a mídia que atua todos os dias no combate aos descalabros da ação governamental contra (ou a favor) da pandemia. É ela que faz campanha pela vacinação e pelas medidas de controle via lockdowns, uso de máscaras e distanciamento social.

O judiciário tem um comportamento contraditório, com muitos juízes colaborando para livrar os filhos do presidente de seus processos enquanto outros, em particular o STF, combatem as ameaças à democracia. No entanto, falta radicalidade mesmo no Supremo, onde os processos que restringem a ação de Bolsonaro e de seus bolsominions andam em surdina e lentamente. O STE está por julgar o processo contra a chapa Bolsonaro/Mourão há quase dois anos e não há sinais de que vá fazê-lo. Bolsonaro também se aproveita da virtual aliança entre bolsonaristas e petistas visando liquidar os processos da Lava Jato. Os atuais aliados de Bolsonaro reunidos no Direitão (mal apelidado de Centrão) rezam pela anulação de todos os processos pelos claros vícios de procedimento da “república de Curitiba”, já que todos eles têm telhado de vidro e participaram de todas as maracutaias desde sempre. Como não é possível manter as condenações da direita e livrar os inculpados de esquerda parece que é hora de se locupletarem todos com a aplicação do “axioma de Jucá”, ou seja, é hora de se dar um basta e acabar com o combate à corrupção.

Para completar este balanço é preciso olhar para o Congresso. Quando Bolsonaro se viu cercado em Julho do ano passado, sem apoio dos militares para um golpe ou auto golpe mais ou menos explícito, ele se voltou para fazer acordos com o Congresso, abraçando-se com o Direitão. A eleição dos presidentes das Mesas da Câmara e do Senado mostraram uma vitória do bolsonarismo, mas com um preço que Bolsonaro vai ter que pagar se quiser manter sua imunidade a impeachments. Cada votação de interesse de Bolsonaro é cobrada em cargos, emendas orçamentárias, e outras benesses. Por enquanto esta base precária se mantém em permanente chantagem e ela só derreterá se a impopularidade do presidente cair muito e, mais ainda, se a crise provocada pela pandemia explodir no colo de todos.

Resta ainda o chamado núcleo duro do bolsonarismo, as igrejas neopentecostais, os grileiros, os mineradores irregulares, as milícias, os caminhoneiros e os terraplanistas de vários tipos, entre outros tipos de delinquentes. São ativistas incansáveis, sobretudo nas redes sociais, mas estão em queda no seu impacto de massas que já foi muito maior.

Last but least, temos que olhar para as Forças Armadas. As polícias são parte do núcleo duro do bolsonarismo e já escaparam do controle do comando dos governadores para se tornarem uma força autônoma com a qual estes últimos têm que negociar. Já a oficialidade do Exército, Marinha e Aeronáutica está sendo cooptada em massa com cargos no governo, o mais militar da nossa história, período ditatorial inclusive. Embora os oficiais generais da ativa tenham evitado se comprometer com os arreganhos mais ameaçadores de Bolsonaro contra o STF e o Congresso as FFAA não atuaram para controlar o energúmeno, aposta feita por muitos dos ditos liberais desde as eleições. Bolsonaro dobrou os generais, livrando-se dos que tentaram controlá-lo e conta com o apoio da oficialidade média e baixa, de tenentes a coronéis. Isto permitiu que Bolsonaro fizesse algo impensável historicamente: facilitou o armamento de seus simpatizantes com arsenais que chegam a 60 armas de grosso calibre e munição suficiente para dezenas de tiros por dia, se assim o quiserem. É tão inacreditável as FFAA abdicarem do monopólio da posse e uso de armas de guerra que fica a pergunta: estão apostando em uma situação insurrecional, ou de guerra civil onde estas forças milicianas teriam um papel a jogar na luta pelo poder do Estado ou perderam a capacidade de interferir nas políticas do Bolsonaro, mesmo aquelas que concernem a sua área específica? Me parece que, como nas polícias militares, os oficiais superiores estão reféns de seus subordinados adeptos de Bolsonaro e incapazes de reagir pelo risco de serem desacatados ou desobedecidos. Com a crise da pandemia se aprofundando e o caos social rondando no horizonte próximo como vão reagir os oficiais generais com as próximas tentativas de enquadramento das instituições da república pelo facínora que habita o Alvorada e, sobretudo, como vão se comportar os oficiais subordinados é que vai ser o xis da questão e o futuro da nossa combalida democracia.

Ainda um último comentário sobre as posições dos vários setores da sociedade e das forças políticas: nos últimos dias estamos vendo prefeitos e governadores, inclusive de direita mais ou menos extrema cobrando de Bolsonaro que pare de atrapalhar a luta contra a covid e faça alguma coisa para conter a barbárie. Pedido inútil, pois Bolsonaro responde com mais discursos agressivos a favor da barbárie. Mas o importante neste processo é que parece que a ficha caiu, pelo menos em parte, para estas autoridades. As políticas de toque de recolher e algum nível de isolamento mais restritivo ainda estão longe do necessário lockdown, mas já são mais do que estes senhores fizeram em muito tempo. Bolsonaro vê a crise à distância, os governadores e prefeitos bem mais de perto e o que estão vendo os assusta. Ainda não tem coragem de enfrentar a pressão de negociantes e empresários, de pastores e padres ou de donos de escolas e abrem exceções que fazem destas políticas um convite para a ineficiência, mas elas já são um passo e um passo contra as atitudes de Bolsonaro.

E a esquerda nisto tudo?

A meu ver a esquerda está como aquele boxeador semi-nocauteado que dispara socos a esmo para tentar afastar seu adversário, mas que perdeu a noção do que se passa no ringue tal a surra que levou. E, para começar, temos que qualificar o que chamamos de esquerda. Temos uma esquerda que podemos chamar de convencional ou parlamentar e todos os partidos com representação em Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas, Câmara de Deputados e Senado além de prefeituras e governos estaduais dela fazem parte. São eles: PDT, PSB, Rede Sustentabilidade e PV, 4 partidos que estão cada vez menos no centro esquerda e mais no centro ou até no centro direita, mas é o que temos. Seguem-se o PCdoB e o PT, inclinando-se para o centro esquerda, mas com uma diferença com os 4 primeiros por terem ainda uma militância de base embora com pouca penetração nos movimentos mais vivos da sociedade e agarrada nas burocracias parlamentares e executivas estaduais e municipais e sindicais em declínio na ação de massas. Finalmente temos o PSOL, com forte militância de base nos setores de maior mobilização e uma presença crescente nos espaços parlamentares com posturas mais combativas. Entretanto, o PSOL lembra um pouco, e não por acaso, o seu partido de origem, o PT, que nos seus primórdios era um verdadeiro fórum de frações políticas com pouca coerência estratégica, aliás, com muito pouca orientação estratégica. Apesar disso, este partido guarda vínculos com movimentos muito vivos na sociedade o que o preserva da ossificação parlamentarista dos outros. Por outro lado, temos uma ampla gama de movimentos sociais com muita penetração em diferentes tipos de bases, mostrando muito dinamismo, mas com pouca articulação entre si e pouca definição tanto sobre a conjuntura em que vivemos como a que nos espera no futuro próximo. Até pela sua natureza de forças nascidas de experiencias de luta específicas de tipo temático ou identitário estes movimentos, salvo exceções como o MST, por exemplo, não articulam suas lutas específicas dentro de uma estratégia mais geral construída coletivamente. Este deveria ser o papel dos partidos políticos de esquerda, mas estes se deixaram isolar desta realidade militante e este enorme potencial de ação transformadora se dispersa em muitas direções sem obedecer a uma análise do foco essencial das contradições da sociedade neste momento e que deveria ser o elemento articulador de todos os temas e setores.

A esquerda convencional ou parlamentar está obcecada pelos processos eleitorais e todas as suas estratégias estão baseadas no seu fortalecimento pelo voto. Por essa razão ela tem muitas dificuldades de liderar processos transformadores nas lutas da sociedade e subordina tudo aos acúmulos em eleitores e eleitos. Soma-se a esta característica uma tendência marcada pelo PT de manter uma hegemonia que foi conquistada em lutas de classes no passado e que vem sendo perdida desde que a eleição para presidente da república tornou-se o centro e o fim de toda estratégia. O PT está mais preocupado em reescrever a história dos últimos 20 anos tentando passar uma narrativa em que todos os erros cometidos não foram outra coisa do que armações dos inimigos e que suas ações foram corretas, ilibadas e sobretudo, trouxeram o paraíso para a terra. Para o PT, neste momento, é mais importante o “Lula Livre”, ou seja a anulação dos processos contra ele e contra o PT do que qualquer outro tema e isto deixa o partido à margem da disputa pelo protagonismo nas lutas mais importantes do povo brasileiro, em particular a luta contra a pandemia. Por outro lado, a mensagem do PT neste momento está cada vez mais voltada para a preparação das eleições de 2022 e mesmo para isso, o que se faz é uma mobilização interna com pouca ressonância na sociedade, com elaboração de programas onde se proclama que o paraíso na terra vai voltar.

A decisão do ministro do STF Fachin na última segunda feira mudou a conjuntura, segundo a avaliação de gregos e troianos, direita e esquerda. Ao anular os processos de Lula julgados em Curitiba, transferindo-os para o tribunal federal de Brasília, Fachin tentou evitar uma decisão iminente da segunda turma do STF decretando a parcialidade do juiz Sérgio Moro nos processos do ex-presidente. Esta decisão seria a pá de cal na Lava Jato e abriria ou abrirá caminho para a anulação em massa de todos os processos. A decisão de Gilmar Mendes de ignorar a decisão de Fachin e manter o julgamento da parcialidade de Moro melou a manobra, que só não foi abortada pelo pedido de vistas do processo pelo juizeco nomeado por Bolsonaro. Mas parece ser questão de tempo para este julgamento chegar ao fim, com um voto de 4 x 1, visto que a ministra Carmen Lúcia deu todas as dicas de sua mudança de voto pela condenação.

A festa em todos os partidos, do PT ao Direitão foi notável, mas em que mudou o quadro político? Segundo todas as análises Bolsonaro tem agora um antagonista de peso para o confronto em 2022 embora as pesquisas pós decisão de Fachin e a promessa da condenação de Moro pela segunda turma do STF apontem para um quadro eleitoral muito dividido, decidido no fotochart entre Lula e Bolsonaro. A questão que Lula parece ter entendido melhor do que a esquerda convencional, é que a pandemia e o seu controle (ou não) vai decidir o grid de largada para o ano que vem. Lula, apesar de fazer um discurso hábil de candidato enfatizou esta prioridade da luta pela vida e adiou o anúncio de sua candidatura. São as medidas que enfrentarão a pandemia e o protagonismo nesta luta que decidirão até se Bolsonaro vai para o segundo turno.

O que fazer?


A questão chave que vai definir o futuro do país é a forma pela qual a pandemia vai ser enfrentada. Tudo mais é secundário ou acessório. As eleições para presidente vão ser ganhas ou perdidas por quem tiver protagonismo nesta luta e não pelos que fizerem os melhores programas ou organizarem as melhores alianças. Estes programas e alianças serão moldados pelo enfrentamento da pandemia e todas as atenções devem estar voltadas para esta luta.

Temos que primeiro construir um programa de luta e ele começa por denunciar os crimes de Bolsonaro e sua patota, inclusive seus cumplices generais e seus cumplices no Congresso. As medidas sem as quais não pararemos o morticínio são claras e conhecidas e tem que ser transformadas em bandeiras de mobilização:

– Lockdown nacional de 21 dias para já!

– Uso de máscaras obrigatório em todo o território nacional com produção e distribuição de máscaras de melhor qualidade.

– Ajuda emergencial para 100 milhões dos mais necessitados, de 600,00 reais até o controle da pandemia.

– Mobilização da sociedade através de suas organizações com apoio de prefeituras, governos estaduais, governo federal e forças armadas para distribuir alimentos, água potável, kits de higiene, gás de cozinha, medicamentos e máscaras para permitir a consigna “fique em casa”.

– Controle das empresas de transporte para evitar as aglomerações criminosas que assistimos todos os dias nas grandes e médias cidades.

– Apoio para a agricultura familiar na forma de créditos sem burocracias e exigências para acesso, para a produção de alimentos básicos com juro zero e três anos de carência.

– Garantia de preços remuneradores dos produtos alimentares e de compras efetuadas pelos governos federal e estaduais para distribuição nas favelas e periferias e para formação de estoques reguladores.

– Importação dos alimentos de base com subsídios para equiparar os preços com os da produção nacional.

– Organização da arrecadação destes alimentos pela categoria dos caminhoneiros hoje ociosa e quebrada para entrega nos centros urbanos em locais de distribuição concertados com as organizações de favelas e bairros periféricos e de entidades de apoio às mesmas, com coordenação das prefeituras.

– Crédito a juros mínimos para micro e pequenos empreendedores e empresas com prazo de carência de três anos e sem as burocracias que travaram estes recursos no ano que passou.

– Compra imediata de todas as vacinas disponíveis no mercado internacional.

– Organização de um plano de vacinação em conjunto com os entes federativos escutando um comitê científico construído pelas entidades especializadas em epidemias e seu enfrentamento.

– Compra imediata de todo material complementar necessário á aplicação das vacinas e contratação de agentes de saúde para acelerar a aplicação do plano no ritmo de entrega das vacinas adquiridas.

– Compra e produção de materiais de testes para covid e construção de um plano nacional de testagem com o mesmo grupo de entres federativos e o mesmo comitê de especialistas.

– Construção de hospitais de campanha ou expansão dos hospitais existentes para absorver os números crescentes de casos cobrando leitos e UTIs até que se controle a pandemia. Apelar para a ajuda internacional em médicos e enfermeiros e contratação de profissionais nacionais.

– Cobrar uma taxa excepcional de financiamento da luta contra a pandemia dos multimilionários e dos bilionários. 10% da fortuna dos primeiros e 20% da fortuna dos segundos.

– Criar um comitê de salvação nacional incorporando representantes dos três poderes e de todos os entes federativos assessorado por uma comissão técnica de especialistas em combate a pandemias indicados por suas entidades de classe. Este comitê teria plenos poderes para traçar os planos e executá-los.

É claro que um programa como esse não é executável com Bolsonaro na presidência e ele terá que ser removido de alguma forma em algum momento. No entanto, este obstáculo não deveria impedir que um movimento por um programa deste tipo se construa e lute para ganhar as rédeas do poder para liderar a luta contra a covid.

Enquanto se constrói um movimento devemos agir para ir executando tudo que for possível deste programa em qualquer nível que for possível. Como pessoa de esquerda acho que devemos pressionar os partidos de centro esquerda e de esquerda para executar partes do programa no Congresso e nos executivos estaduais e municipais. Por exemplo, pressionar para que os prefeitos eleitos pela esquerda adotem com coragem medidas que serão desagradáveis, como os lockdowns. Araraquara está fazendo algo próximo disso e logo veremos os resultados, se é que está conseguindo aplicar os decretos do prefeito de forma correta.

São muitas as frentes de luta e a esquerda terá que atuar em todas elas, mas o exemplo das administrações sob sua responsabilidade será o melhor argumento para cacifar seus líderes para as eleições de 2022. Antes de brigarmos para ver quem vai ser candidato temos que controlar a pandemia e debelar a crise alimentar para evitar o pior dos mundos que seria um caos social com saques de armazéns e supermercados e invasões de hospitais e postos de saúde.

Março de 2021

* Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (69-71), fundador da ONG AS-PTA, Agricultura Familiar e Agroecologia