Cultivando Solidariedade

Cultivando Solidariedade: Jornada de Luta mobiliza famílias Sem Terra em todo o país

Em entrevista, Kelli Mafort e Cássia Bechara falam sobre a Jornada de Luta deste mês de outubro e ressaltam: “saúde, educação e comida não podem ser consideradas mercadorias”
Produção de alimentos para solidariedade no assentamento 8 de Julho, no estado do Paraná. Foto:Jaine Amorim

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

Neste mês de outubro, uma série de atividades serão realizadas por todo o país em comemoração a datas que fazem parte do calendário do Movimento Sem Terra, mas que se unem em torno de uma única finalidade: a solidariedade. Assim, esta semana marca o início da Jornada Nacional Movimento Sem Terra: Cultivando Solidariedade.

A construção da Jornada se dá no âmbito da solidariedade Sem Terra e como o Movimento tem atuado sua prática como princípio político e ocupado diversas dimensões da luta na atualidade. As ações são um esforço coletivo de criar unidade nacional, com sistematização de dados, divulgação das iniciativas e construção de uma poderosa plataforma de agitação e propaganda das iniciativas do MST. 

“A Jornada ‘Movimento Sem Terra: Cultivando Solidariedade’ se dá dentro da construção do Plano Nacional de Solidariedade, que é permanente e vai além das jornadas e da pandemia”, explica Cássia Bechara, do Coletivo de Relações Internacionais (CRI) do MST. Nesta entrevista exclusiva junto com Kelli Mafort, da Coordenação Nacional do Movimento, elas falam sobre como a solidariedade está presente no dia a dia da organização, os principais desafios da conjuntura, além de levantar discussões importantes como a Reforma Agrária Popular e a crise ambiental.

Confira:

Doação alimentos do MST em Pernambuco. Foto: Olivia Godoy
A luta por saúde, educação e contra a fome são pontos centrais nesta Jornada. Quais as principais reivindicações diante desta conjuntura?

Kelli Mafort: Saúde, educação e comida não podem ser consideradas mercadorias. Essa é a base das necessidades humanas, e é por isso que o MST se coloca em movimento na luta política para exigir que saúde, educação e alimentação sejam direitos humanos inegociáveis. Nós não podemos permitir a mercantilização que se faz, por exemplo, nos planos de saúde, como estamos vendo no caso da Prevent Senior, que realizou testes e experimentos nazi-fascistas à custa de uma necessidade diante de uma pandemia internacional. 

Além disso, nós sabemos que foram os jovens, adolescentes e as crianças do campo, e os mais pobres, e também negros e negras do nosso país, os mais prejudicados pelo acesso ao ensino remoto durante a pandemia. É preciso denunciar essa desigualdade. Denunciar o quanto as corporações estão tomando conta da educação para instrumentalizá-la, mercantilizá-la, e também para passar valores fundamentalistas. 

A questão da alimentação é algo fundamental, um direito humano, e é por isso que temos que nos colocar em movimento contra os 19,1 milhões de pessoas que estão passando fome e mais da metade do povo brasileiro, 116,8 milhões de pessoas, que vivem em insegurança alimentar. Nós estamos em um país com fome, sendo que o agronegócio comemora recorde nas suas exportações. Agronegócio não produz comida, ele produz commodities para exportação, mas ele se apropria da produção de alimentos da agricultura familiar porque controla a indústria de alimentos e a distribuição e é por isso que ele prefere pegar o arroz, que ele não produz, mandar para fora e receber em dólar, enquanto o seu povo passa fome. 

O Governo Bolsonaro desmantelou as políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar, vetou o PL Assis Carvalho II de fortalecimento dos agricultores e agricultoras e desmantelou as políticas de regulação de estoque de alimentos no nosso país, como a Conab. É tudo isso que vamos tratar nesta grande jornada e é por isso que nós convocamos os companheiros e companheiras para que ajudem a construir essa jornada desde a base.


Cássia Bechara: As nossas reivindicações centrais no atual período estão sintetizadas no nosso lema “Contra a fome, por terra e vida: Fora Bolsonaro Genocida”. Essa é a síntese que condensa todas as principais lutas desse período histórico. 

Contra a fome, a gente tem a luta pela soberania alimentar, pela produção de alimentos saudáveis, contra os agrotóxicos, pela agroecologia, e a luta pelo acesso a uma alimentação de qualidade para toda a população.

Dentro desse lema, por terra e vida [e vida digna], a gente traz nessa síntese a luta pela reforma agrária popular e por tudo o que implica numa vida digna. Então, saúde de qualidade, pública, gratuita; educação de qualidade, pública, gratuita; trabalho, habitação e tudo o que é necessário para que tenhamos uma vida digna.

Então eu acho que essa síntese contra a fome, por terra e vida, traz todas as pautas centrais desse período. Só que nada disso é possível com o Bolsonaro no governo. Então é central, prioritário, para que a gente possa avançar em todas as outras pautas, tirar esse projeto de governo, tirar Bolsonaro e o seu projeto de retrocesso, seu projeto de morte, de venda do país, seu projeto de destruição da natureza. Esse lema traduz realmente as pautas centrais desse período histórico: “Contra a fome, por terra e vida: Fora Bolsonaro Genocida”. 

Esse período nos colocou novos desafios. Como tem sido a construção desta Jornada de Solidariedade e as demais ações diante da pandemia?

Cássia: Realmente a pandemia nos trouxe uma série de desafios e, talvez um dos principais, foi a necessidade do isolamento, porque ele nos retirou um dos nossos principais instrumentos de luta que são as ruas, as mobilizações de massa. Então o MST soube, com muita criatividade, transformar esse desafio num potencial que foi o que nós chamamos de isolamento produtivo, para responder uma das necessidades imediatas que também surge com a pandemia, ou se aprofunda com ela, que é a fome.

Em um universo de trabalhadores e trabalhadoras onde mais de 50% estão na informalidade, em especial nos primeiros meses da pandemia, quando as medidas restritivas estavam mais rígidas e as pessoas não podiam sair para trabalhar, para ganhar o seu pão, para poder trazer comida para dentro de casa, houve uma necessidade imediata que foi colocada para o conjunto da sociedade brasileira, que o Estado não respondeu, que era como minimizar a situação de fome, de falta de alimento, dessa grande parcela da classe trabalhadora que estava impedida de trabalhar.

As ações de solidariedade do MST que se desenvolveram no âmbito da pandemia se iniciaram como uma resposta a uma necessidade imediata concreta da classe trabalhadora brasileira, do povo. Mas a solidariedade para nós não é uma jornada. Ela vai muito além de uma jornada e vai muito além da pandemia. 

Outubro é um mês historicamente de luta para o MST, porque nós temos normalmente três grandes jornadas: a Jornada do Che, que é ali no 8 e 9 de outubro, no dia em que ele foi capturado e depois assassinado, que já é, historicamente, uma jornada de solidariedade e  trabalho voluntário, onde no último período a gente vem mobilizando principalmente a nossa juventude para doação de sangue, para o trabalho em mutirão; nós temos ali em torno do dia 12, a Jornada Sem Terrinha, que é por si só uma jornada de solidariedade também, na qual as nossas crianças sempre tiveram o elemento da solidariedade internacional, entre outras; e temos em 16 de outubro o Dia Internacional da Soberania Alimentar. Então, o que nós fizemos foi juntar todas essas jornadas numa única e concentrar essas três datas, nas quais a gente mobiliza setores da nossa base, a juventude, Sem Terrinha e o conjunto no dia 16 de outubro, pra gente então construir o mês de outubro.


Kelli: A solidariedade é um valor humano fundamental cultivado pelo MST, mas também é uma denúncia contra esse governo e o Estado que não fazem nada diante de uma situação que afeta a vida de metade do seu povo. É preciso que a gente diga que a pandemia trouxe sim novos desafios, mas a desigualdade social, que é gerada por esse modelo do capital em crise, que produz, por um lado, bilionários que especulam com a nossa vida, que correm para paraísos fiscais, como agora estamos vendo no Pandora Papers; que contribuíram para processos de corrupção na compra de vacinas, como a CPI já está avançando [na denúncia]; e, por outro lado, a gente vê proliferar uma massa sobrante de pessoas que podem morrer de vírus, de fome e até de bala, pelas pelas armas da polícia ou da milícia no nosso país, principalmente a juventude negra. 

Esses problemas não são novos, mas eles foram agravados com o golpe de 2016 e com o governo Bolsonaro. A pandemia colocou uma lupa gigante sobre esses problemas históricos, e a solidariedade se impôs como uma necessidade para ajudar a salvar vidas.

É por isso que o Movimento Sem Terra, e vários outros movimentos populares, junto com as nossas apoiadoras e apoiadores, se colocaram em movimento para poder suprir essa necessidade humana fundamental que é o direito à alimentação.

Nós temos que nos indignar diante da fome, nós temos que nos indignar diante da privação. Não podemos aceitar que 10% do salário mínimo seja para comprar um gás de cozinha. Não podemos nos conformar com esta conta de energia extremamente alta, e uma parte disso tem responsabilidade direta do agronegócio, pelo desmatamento e pelo processo de diminuição da absorção da água das chuvas abastecendo as principais bacias hidrográficas do nosso país.

É muito importante que a gente denuncie esse modelo perverso. Por isso que a solidariedade é um ato necessário, mas ao mesmo tempo, ela é carregada de denúncia, de indignação desse Estado que quer ver uma parte do seu povo morrer.

Como o conceito de solidariedade está presente no MST, para além da doação de alimentos, por exemplo?

Kelli: O Movimento Sem Terra é resultante de muita solidariedade. Nos anos 70 e início dos anos 80, quando nós estávamos formando a nossa organização, contamos com muita solidariedade da sociedade brasileira nas ocupações de terra, debaixo da lona preta. E agora estamos tendo a condição de devolver essa solidariedade, porque conquistamos 450.000 famílias assentadas debaixo da bandeira da Reforma Agrária. São 90 mil famílias acampadas em luta, mas que estão num pedacinho de terra e que também conseguem produzir seu próprio alimento. 

Kelli Mafort, da Coordenação Nacional do MST. Foto: Acervo MST

Estamos diante de uma situação em que temos, hoje, fruto da luta do Movimento dos Sem Terra, mais de duas mil associações, 160 cooperativas, 140 agroindústrias, duas mil escolas, 58 centros de formação, e a nossa Escola Nacional Florestan Fernandes. É muito importante que a gente se orgulhe de tudo o que a gente conquistou na luta, mas a gente saiba que a solidariedade é uma prática fundamental.

Para nós do Movimento Sem Terra, do campo popular, da periferia viva, junto com outras organizações, a solidariedade é uma possibilidade de construir trabalho de base, diálogo com as populações que vivem nas periferias urbanas e rurais do nosso país. 

Por isso que nós estamos encontrando as casas abertas para receber esse alimento, mas também para receber muita prosa, muito diálogo, e as pessoas que estão recebendo a solidariedade nos perguntam: o que a gente pode fazer para mudar essa realidade? É quando a gente sintetiza que a maior solidariedade que o Movimento Sem Terra e outros movimentos podem oferecer para a classe trabalhadora na atualidade é se colocar em movimento, se colocar em luta, fazer um grande processo de ocupação de terra, ocupação de moradia, ocupação dos espaços, que são espaços nossos que a gente possa retomar através da luta.


Cássia: A solidariedade é um princípio e um valor do Movimento Sem Terra. Ela está presente desde a origem do MST, e nada mais solidário do que a organização coletiva de uma ocupação de terra, do que o companheirismo necessário para a organização coletiva de um acampamento. A solidariedade está no nosso DNA e ela se manifesta de diferentes formas. Uma delas é a solidariedade com a nossa classe, a solidariedade com todas as lutas da classe trabalhadora, em todas as suas dimensões, seja a luta pela libertação, pelo emprego, pela soberania nacional, a luta contra a mineração, a luta dos povos indígenas e dos povos quilombolas. O MST sempre apoiou e apoiará todas as lutas da classe trabalhadora brasileira.

Outra dimensão é a solidariedade e o companheirismo da organização coletiva da nossa base. O viver coletivo é um ato de solidariedade, ele carrega em si a solidariedade necessária para a gente poder viver coletivamente, organizar a vida de forma coletiva.

Tem a dimensão da solidariedade com o povo brasileiro, e essa dimensão se mostra nos programas de alfabetização “Sim, eu posso”, por exemplo; hoje o MST vai lá para as periferias organizar, alfabetizar, ajudar o povo a ler o mundo e as palavras. É claro que temos a dimensão da solidariedade internacionalista, as nossas brigadas, quando militantes do MST doam anos da sua vida e da sua militância para ir apoiar e trabalhar pela/junto à luta de outros povos do mundo, que é um exemplo de solidariedade internacionalista.

E é claro que a doação de alimentos também é central para a nossa solidariedade, porque ela é o chão que a gente pisa. Somos um movimento camponês, de agricultores e agricultoras, que trabalhamos a produção de alimentos saudáveis como central. A solidariedade, para o MST, está presente no cotidiano, em diferentes dimensões, ela é algo permanente e contínuo.

Observando de maneira mais geral, como as ações internacionalistas estão inseridas nesta Jornada de Solidariedade?

Cássia:  O elemento internacionalista da nossa Jornada de Outubro se dá em torno do dia 16, que é o Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar. Soberania alimentar é um conceito que foi construído e desenvolvido pela Via Campesina Internacional e que hoje é usado amplamente. Historicamente, os movimentos e organizações camponesas do mundo todo fazem ações em torno do dia 16 de outubro, e são ações de solidariedade, principalmente em torno da doação de alimentos, no sentido da gente debater também com o conjunto da sociedade o que significa a soberania alimentar, mas também ações de denúncia ao agronegócio.

Esse é o elemento internacionalista dessa grande jornada de outubro, que nós estamos chamando dentro do MST de “Movimento Sem Terra: cultivando a solidariedade”. Estão sendo puxadas pela Via Campesina Internacional, mas também pela Jornada Internacional Anti-imperialista, ações de solidariedade e de denúncia do agronegócio no mundo todo, em torno do 16 de outubro. Aqui no Brasil, respondendo às orientações da Via Campesina Internacional, as organizações da Via Campesina Brasil, das quais o MST faz parte, tiraram como dia central para as ações de denúncia o dia 14 de outubro, onde nós vamos ter ações de denúncia do agronegócio em diversas capitais do Brasil e, principalmente, o 10 ao 16, que vão ser os dias da jornada com as ações de solidariedade, doação de alimentos e várias outras ações.

A nível internacional, a Via Campesina vai ter uma atividade no dia 16 de outubro, uma live, um festival internacional pela soberania alimentar, que também é nosso Dia Nacional de Luta Contra a Fome, quando a gente vai ter as ações unitárias de doação de alimentos em todo o território nacional.

Cássia Bechara, durante ação que comemorou Centenário do Paulo Freire. Foto: Acervo MST
E como as pautas do Fora Bolsonaro estão inseridas nesta Jornada de Solidariedade?

Kelli: O Fora Bolsonaro é uma necessidade urgente. Nós não temos condição de esperar as eleições de 2022 para derrotar ele, é preciso derrotá-lo desde já nas ruas e é isso que os movimentos em torno da campanha Fora Bolsonaro estão fazendo desde o início do ano, no primeiro semestre. Nós tivemos lutas importantes, mas, infelizmente, ainda não conseguimos mobilizar setores fundamentais de trabalhadores e trabalhadoras da nossa sociedade afetados por esta crise econômica gravíssima. Nós estamos diante de uma situação de estagnação econômica, baixíssimo crescimento e também junto a um processo de inflação galopante que é mais sentida no preço dos alimentos.

A questão da carestia está colocada como uma realidade, seja pela alta do preço dos combustíveis, a alta da energia, do gás de cozinha, o preço dos alimentos, está tudo caro e nós estamos dizendo que a culpa é do BOLSONARO.

Por esse motivo que nós estamos indo pras ruas e 2 de outubro mostrou que a nossa principal reivindicação nas ruas tem sido a questão das condições materiais do povo brasileiro. Por isso que denunciamos a fome, a situação econômica, o desemprego no nosso país. É fora Bolsonaro, mas nós temos que levantar junto com essa bandeira outros temas que são necessários e que atingem em cheio a vida do povo trabalhador.

Nesta conjuntura temos que seguir na nossa jornada de lutas, nos atos, que são muito importantes, mas junto com isso organização de ações simbólicas, como fez o MTST na bolsa de valores, como fez o Levante Popular da Juventude em frente a Prevent Sênior, como faz o Movimento Sem Terra nas ações de solidariedade, também denunciando a perversidade desse modelo. É por isso que temos que seguir em um crescente da luta, organizando a indignação e isso é tarefa fundamental para os movimentos e também para o Movimento Sem Terra.

As mobilizações pelo Fora Bolsonaro e o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis se encaixam nesta discussão?

Kelli: Dados revelados pelo relatório do IPCC e também pelo Mapa Biomas nos trazem muitas preocupações sobre o colapso climático que nós estamos vivendo. É preciso dizer que o agronegócio e o setor da mineração são grandes responsáveis por tudo o que está acontecendo. Desde a crise do capital, nós estamos vivendo uma mercantilização sobre a natureza: terra, água, solo, vento, biodiversidade, para essa gente do capital, são mercadorias. E esta mercantilização da vida e da natureza está custando muito caro, principalmente para os povos que serão os mais afetados por todo esse colapso.

Nós temos, nos últimos trinta anos, uma redução de 15% na superfície de água. O desmatamento da Amazônia em julho foi o pior dos últimos 10 anos. Tem muito fogo no Cerrado, na Caatinga, na Mata Atlântica. Nós já temos na Caatinga um deserto em formação que é do tamanho da Inglaterra. Daqui há poucos anos talvez o semiárido brasileiro deixe de ser uma área agricultável e passe a ter mais aridez, com isso, expulsando milhares de trabalhadores e trabalhadoras dessas regiões.

Sabemos que esses eventos climáticos extremos de muito frio, muito calor, que ocorrem no Brasil e também em outras partes do mundo, revelam o quanto a relação ser humano-natureza está desequilibrada, pautada por essas empresas do capital. Recentemente tivemos, principalmente no interior de São Paulo, uma verdadeira tempestade de poeira e isso tem relação direta com o agro e suas técnicas invasivas no solo, de ação extrema e também de queimadas. A forma como o agro se relaciona com o solo é predatória, destruindo a vida, a biodiversidade e os microrganismos ali presentes.

E é por isso que quando nós estamos diante de um evento climático como esse, há um resultado direto, essa tempestade de areia, que mostra o quanto isso está diretamente relacionado com esses solos degradados, sem matérias orgânicas, que não cumprem a função de reter dióxido de carbono que é fundamental para a gente poder avançar e fazer frente às mudanças climáticas.

Foto: Brenda Baleiro

É muito importante que a gente evite esse processo de erosão eólica justamente fazendo a cobertura florestal, fazendo o manejo correto da floresta, plantando em solos de floresta, plantando com diversidade, proliferando técnicas de agroecologia e também de agrofloresta, entendendo a agroecologia como uma questão maior, que tem a ver com novas relações que nós precisamos semear.

Por isso, o nosso Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis é fundamental não somente para as nossas áreas de acampamentos e assentamentos, mas também para as localidades onde a gente está praticando a solidariedade. A gente tem a alegria de partilhar que estão sendo proliferadas as hortas, bosques, agroflorestas, também na cidade, também na luta por moradia e nesses espaços urbanos ocupados. Precisamos proliferar isso, ter mais gente plantando a própria comida, mais gente plantando árvores e fazendo frente a essa situação. 

Não basta zerar o desmatamento. Nós vivemos um tempo histórico, que é preciso plantar mais árvores, é preciso trabalhar a agroecologia e frear os desmandos do agronegócio que só visa o lucro.


Cássia: Se a gente entende a solidariedade como um elemento permanente, como um valor, um princípio, ela está inserida em todas as nossas ações. A partir do plano, primeiro a gente organiza a nossa produção, essa produção coletiva e individual a partir do pensar a solidariedade, e concretamente, o plantio de árvores e a solidariedade com o planeta. O que há de mais bonito do que a solidariedade com a humanidade a partir de salvar a nossa única casa comum, que é o nosso planeta Terra?

A solidariedade não é uma coisa “a mais”, ela está dentro das ações cotidianas do nosso Movimento e das atividades já planejadas. 

A solidariedade permanente só é possível com a organização da produção, e a Jornada Nacional de trabalho de base é o que vai proporcionar esse nível de organização, de formação, para que a gente possa realmente construir um plano nacional continuado, permanente e intencionalizado de solidariedade, que una a organização da produção, a organização da nossa base e também a organização do povo.

A solidariedade é a contraposição ao racismo, ao ódio, ao genocídio, ao governo de morte, ao governo de fome. Então quando a gente pratica a solidariedade na organização do povo, na doação de alimento, nas marmitas, nas cozinhas solidárias, na distribuição de cesta básica, nós estamos, na prática, contrapondo a tudo o que esse governo representa.

Quais são as perspectivas e desafios para que as lutas defendidas na Jornada do MST se concretizem daqui para a frente?

Cássia: Basicamente podemos dividir em dois eixos; o primeiro é o lema da jornada de outubro, “Movimento Sem Terra:Cultivando Solidariedade”, o que já está se concretizando. O que nós temos é que potencializar, organizar e dar uma maior intencionalidade política, mas já está se concretizando. Estamos falando de cinco mil toneladas de alimentos doados, um milhão de marmitas, cinco mil cestas básicas, 50 mil máscaras; Estamos falando de dois mil agentes populares de saúde formados em todo país; Nós estamos falando das várias cozinhas solidárias, dos vários programas de formação, da construção das hortas urbanas, da organização da nossa base e das comunidades onde a gente tem atuado no campo da solidariedade.

Por outro lado, a síntese das nossas lutas desse período, que é o fora Bolsonaro, que estão ali naquele nosso lema “Contra a fome, por terra e vida: fora Bolsonaro genocida”, isso a gente só vai realmente avançar e concretizar, primeiro, tirando o Bolsonaro. A gente só vai avançar nessas outras pautas quando a gente conseguir derrubar esse projeto de fome e morte que hoje é representado pelo Governo Bolsonaro. 


Kelli: A tarefa principal do Movimento Sem Terra é colocar os seus sujeitos políticos da luta, crianças, jovens, mulheres, sujeitos LGBTQIA+, adultos, idosos, em movimento. E é muito importante que a gente trabalhe essa perspectiva da Reforma Agrária Popular. 

Nunca antes a reforma agrária foi tão necessária no nosso país, mas sabemos que uma reforma agrária do tipo clássica, para desenvolver o capitalismo, nunca fez parte da nossa história e não será agora que ela será apresentada como uma plataforma para enfrentar a fome. Mas nós, dos movimentos do campo, sabemos que é somente medidas estruturais como a reforma agrária, que podem enfrentar na raiz o problema da fome.

Por isso que formulamos a Reforma Agrária Popular, essa reforma agrária com uma necessidade histórica para nós, Sem Terra que vivemos no campo, mas também da massa que está nas cidades; 85% do povo brasileiro está nos espaços urbanos e é preciso fazer com que o povo que vive na cidade também lute por terra e por reforma agrária.

Essa é uma necessidade para que a gente possa enfrentar esses problemas estruturais de falta de moradia, de falta de trabalho e renda e, principalmente, de falta de alimentação. Por parte do capitalismo e do agronegócio, a gente só vai ter um prato cada vez mais envenenado e globalizado, cheio de produtos ultraprocessados que não nos alimentam e também de produtos com agrotóxicos, transgênicos. É preciso dizer não a esse prato globalizado. Cada vez mais as grandes corporações querem destruir a cultura da produção de alimentos, as sementes, essas práticas agroecológicas que nós cultivamos nos nossos territórios.

Por isso é tão importante a gente lutar em defesa dos povos do campo, das águas e das florestas, mas também de seus territórios e seus modos de vida. Nesse sentido, a questão agrária e ambiental têm uma relação muito forte e assume um conjunto de necessidades do que temos que enfrentar daqui para a frente. É muito importante que a gente denuncie a questão do marco temporal em relação aos indígenas; que a gente denuncie a imposição da titulação de domínio para os assentamentos de reforma agrária, que nada mais é do que a privatização da reforma agrária; que a gente denuncie a regularização da grilagem de terra e a entrega de 65 milhões de terras públicas para o capital e para o agronegócio.

É por tudo isso que essa jornada acontece, como uma grande solidariedade dos povos, mas também como uma convocação para que a gente siga firme na nossa resistência ativa e, ao mesmo tempo, organizando os passos futuros que nós temos que dar, principalmente com as ocupações de terra que nós podemos, e devemos, construir no próximo período.

*Editado por Maria Silva e Wesley Lima