Meio Ambiente

Do “Capitalismo Verde” à transformação agroecológica: projetos em disputa na crise ambiental

Em entrevista ao MST, Tatiana Oliveira, assessora para Políticas Públicas Socioambientais do Inesc, fala sobre os projetos em disputa relacionados à crise ambiental
Para massificar o debate da crise ambiental foi realizado o II Curso Nacional Questão Ambiental, na ENFF, em Guararema (SP). Foto: Acervo MST

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

A crise ambiental é um desafio urgente e complexo que exige propostas igualmente transformadoras. Um destes projetos é o “Capitalismo Verde”, uma abordagem que busca conciliar o crescimento econômico com a preservação ambiental, mas que na verdade perpetua a exploração desenfreada dos recursos naturais e a desigualdade social.

Com o objetivo de massificar esse debate entre a militância do MST e nos movimentos que integram a Via Campesina, o MST realizou o II Curso Nacional Questão Ambiental, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) , em Guararema (SP) para aprofundar as reflexões sobre as estratégias de ações em defesa dos bens comuns nas organizações, a partir das agendas de luta do período e o enraizamento do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis.

Durante o curso, os educadores/as convidados desempenharam um papel fundamental na discussão dos temas, contribuindo para a compreensão da proposta pedagógica e envolvendo professores/as, estudiosos/as e líderes de organizações sociais e movimentos populares em defesa do meio ambiente.

Tatiana Oliveira, assessora para Políticas Públicas Socioambientais do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), conduziu o debate “Projetos em disputa na Crise Ambiental: Capitalismo Verde”, a partir da perspectiva de que o tema vem ganhando cada vez mais centralidade dentro dos debates do conjunto da organização.

Gil Alvarenga, do Coletivo do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, destacou que o curso proporcionou uma conexão entre teoria e prática desenvolvida nos territórios. Com representantes de vários estados e biomas brasileiros, o Curso reuniu um coletivo engajado nos movimentos que discutem e atuam em questões ambientais em todo o país.

Tatiana Oliveira. Foto: Arquivo Pessoal

A partir do debate, foi vista a importância de formar uma nova cultura socioambiental a partir de estratégias das lutas populares para enfrentar os interesses e investidas do capital sobre a natureza. Em entrevista ao MST, Tatiana Oliveira falou sobre os projetos em disputa e alternativas para transformar as bases do sistema econômico e social, na construção uma sociedade mais sustentável e justa.

Confira a entrevista:

Página do MST: Quais são os projetos em disputa atualmente relacionados à crise ambiental? E quais são as perspectivas populares sobre esses projetos?

Tatiana Oliveira: Existem muitos projetos em disputa relacionados à crise ambiental. Uma coisa importante para entender essa disputa é que ela não acontece apenas no contexto da crise ambiental, mas de múltiplas crises que envolvem desde a reconfiguração das formas de acumulação, produção e extração de valor até o meio ambiente e a saúde ou os cuidados, as políticas de reprodução social da vida e da sociobiodiversidade.

Recentemente, aconteceram muitos eventos internacionais cuja discussão principal foram as formas de financiamento das políticas climáticas no nível nacional. Esse é um tema em ebulição! Um exemplo foi a cúpula organizada pelo governo francês, sob a presidência de Emmanuel Macron, por um Novo Pacto Global de Financiamento. O que está em jogo é o grau de autonomia dos governos para definirem as suas políticas nacionais e o grau de influência e participação da iniciativa privada e do sistema financeiro para definirem o desenho dessas políticas e suas modalidades de financiamento.

Na agenda climática, podemos ver esse panorama na discussão sobre a obrigação histórica dos países do Norte global em oferecer financiamento, por meio da ajuda oficial ao desenvolvimento, para a transição dos países do Sul global rumo a uma economia de baixo carbono e, também, nos instrumentos econômicos e financeiros que têm sido criados para impulsionar a captação de recursos para políticas de mitigação e adaptação climática, além das medidas para enfrentar perdas e danos. Toda a discussão recente sobre economia verde, bioeconomia, mercados de carbono, pagamentos por serviços ambientais, troca de dívida por natureza, entre outros, passa, necessariamente, por essas discussões. Linguagens como “capital natural”, “ativo ambiental”, “economia verde” são expressões que apontam para novas formas de rentismo atreladas à natureza e aos povos que a co-produzem e que permitem o reposicionamento da natureza como um ativo ambiental de valor intrínseco. 

Quais são os principais desafios enfrentados pela população na busca por soluções para a crise ambiental? Existe um conflito entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental?

Região alagada no município de Juatuba (MG), às margens do Rio Paraopeba, após fortes chuvas que atingem o estado. Foto: Douglas Magno/AFP

Após a crise econômica e financeira de 2008, um longo processo de reestruturação da arquitetura financeira global gerou novos produtos e serviços financeiros. Por meio de uma nova modelagem financeira para a criação de  ativos, títulos e seguros; logo, com base em novas formas de invenção e circulação de valor imaterial, os processos de mercantilização da natureza foram se aproximando cada vez mais do que tem sido chamado de “assetização” da natureza.

Em uma economia sob domínio financeiro, a “assetização da natureza” pode ser caracterizada pela transição de um regime de criação e expropriação do valor baseado na propriedade da mercadoria/trabalho para uma forma de organização da economia e da sociedade pautada pela propriedade-renda ou da propriedade-ativo financeiro. Esta transformação é fundamental para a conciliação entre economia e políticas de desenvolvimento, por um lado, e preservação ambiental, por outro lado. Embora, desde a década de 1970, a economia ecológica apontasse para a necessidade de um debate econômico que pudesse levar em consideração a degradação ambiental como uma externalidade do processo produtivo, e, portanto, do desenvolvimento econômico dos países, foi apenas na segunda década do século XXI que novas formas de rentismo permitiram o reposicionamento da natureza como um ativo ambiental de valor intrínseco.

O regime internacional do clima contribui para esse processo na medida em que, em larga medida, define o combate ao aquecimento global e os seus efeitos a partir de critérios vinculados, de forma quase estrita, à ideia de descarbonização. 

Quais são as iniciativas populares que visam enfrentar a crise ambiental em sua região? Como essas iniciativas têm impactado positivamente a comunidade local?

Foto: Comunicação do MST na Bahia

Hoje, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês) e o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já reconhecem a contribuição dos povos indígenas, comunidades tradicionais e rurais para a preservação do meio ambiente. A base deste reconhecimento é a percepção de que os modos de vida dessas populações – usualmente considerados atrasados por uma perspectiva da modernidade que privilegia a técnica científica sobre os conhecimentos tradicionais – conseguiram construir uma relação de interdependência com a natureza que é benéfica para humanos e não-humanos, além de ser a raiz da preservação da biodiversidade.

Isso é muito importante porque contesta visões conservacionistas do passado, para as quais a preservação da natureza depende do seu cercamento e da expulsão dos povos que vivem, por exemplo, em regiões de florestas tropicais. Os povos da Amazônia e do Cerrado produzem cotidianamente múltiplos arranjos econômicos, diferentes formas de mercado, que envolvem a moeda imposta pelo governo nacional, mas também incorporam outras formas de troca, de dádiva e de dívida. Nesse fazer cotidiano, essas comunidades também produzem valor, também produzem riqueza. É o que mostra um estudo do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA), que afirma que, em 2020, as socioeconomias amazônicas responderam por um Valor Adicionado Total à economia do estado do Pará de R$ 11  bilhões de reais. 

Confira também o áudio com outras perspectivas do curso.

*Editado por Solange Engelmann