Centro-Oeste

Cerrado, terra e territórios: a luta de um povo que floresce mesmo diante das realidades áridas

Artigo ressalta importância do bioma do Cerrado na preservação do meio ambiente
Foto: Bento Via/ WWWBrasil

Por Luana Carina Bianchin e José Carlos Correia Paz/ CPT MT
Da Página do MST

O bioma Cerrado está presente em cerca de 22% do território nacional e compõe 5% da biodiversidade do planeta. Sua área contínua é formada por mais de dois milhões de km² e está presente em 12 estados. É o segundo maior bioma brasileiro de área contínua, mas a predominância está na região centro-oeste, por isso, é conhecido como o coração do Brasil.

Berço das águas

Quando se busca mais informações sobre este bioma encontramos repetidas vezes a expressão “berço das águas”. E de fato, é no Cerrado que brotam veios d’águas que são distribuídos para as grandes bacias hidrográficas do continente. Destacam-se as importantes bacias: São Francisco, Paraguai e de vários rios que alimentam o Pantanal cujo elemento crucial para a função ecossistêmica é o fluxo hidrológico, que possibilita espaços de reprodução e aquisição de alimentos para a biodiversidade local, em sua sazonalidade de enchentes e secas.

No imaginário da sociedade brasileira a urgência de toda forma de luta pela preservação deve se concentrar no bioma Amazônia. Não há espaço para o conhecimento e discussões sobre as gritantes situações presentes nos outros biomas do país. É evidente que a Amazônia é importante, até porque, se trata de 20 bilhões de toneladas de água por dia que as árvores da floresta amazônica transpiram. No entanto, esta água que se forma em nuvens, tem a sua importância para as regiões do centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, porque existe o Cerrado como a grande caixa d’água e que por isso está interconectado com todos os biomas brasileiros.

A biodiversidade desse bioma é muito rica. São diversas formas de vegetação com alta variedades de plantas vasculares, desde regiões campestres até a formação de uma vegetação lenhosa, além disso, 40% da flora é endêmica, possibilitando ao Cerrado ser a mais diversificada savana tropical do mundo.

É diante desta diversidade de vegetação, de árvores contorcidas e flores secas, que se encontra também uma grande riqueza de espécies. Seja no céu, na terra ou nas águas existe uma diversidade enorme de animais: mamíferos, aves, répteis, anfíbios, invertebrados e peixes.

Os verdadeiros guardiões

Foto: Edson Prudencio/ APA-TO

O Cerrado é o espaço onde vive grande parte da população brasileira, agregando uma diversidade de costumes, valores e crenças, tradições e cultura. Segundo as informações apresentadas pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) os territórios conservados do Cerrado formam, muitas vezes, corredores de conexão entre áreas protegidas e terras indígenas. “São agricultores familiares e comunidades tradicionais, como quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu e povos indígenas, agrupamentos humanos de profunda sabedoria e respeito ao meio ambiente, com expressivo senso comunitário. Além, claro, das populações urbanas que compõem um rico mosaico humano”1.

A ocupação indígena possui onze anos de existência e no Cerrado abriga em torno de 216 terras indígenas (TIs) e 83 diferentes etnias. Distribuídos principalmente nos estados do Maranhão, Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, possui uma população indígena de aproximadamente 100 mil habitantes. No entanto, a grande maioria das TIs não passou por um processo de regularização fundiária. Tal condição resulta em sérios conflitos, os quais têm sido um dos fatores de ameaça de extinção de diversos grupos indígenas.

Existem atualmente 44 territórios quilombolas no Cerrado. Essas comunidades, remanescentes da época da escravidão, seguem lutando pelo reconhecimento de seus territórios e pela manutenção de sua cultura, tradições e modos de viver.

Vidas ameaçadas

Foto: Luiz Fernando

Atualmente, o Cerrado é um dos biomas mais ameaçados, possui apenas 47,9% de cobertura da vegetação nativa2, principalmente devido ao avanço do agronegócio que além de desmatar para o plantio de monocultivos para exportação, como soja, milho e algodão, provoca queimadas, contamina o solo e as águas com o uso de agrotóxicos, expulsa e adoece os povos e comunidades que vivem nesses territórios.

No Cerrado, o fogo faz parte da dinâmica do bioma, principalmente relacionado a germinação de sementes, esse fogo tem início por fatores naturais, através das descargas elétricas no período da chuva, desta forma a umidade evita a propagação descontrolada do fogo. O fogo é manejado pelos povos e comunidades tradicionais há milhares de anos, um saber ancestral utilizado nos sistemas agrícolas tradicionais em diversos biomas. Em contraponto, o fogo criminoso, é extremamente prejudicial, ocorrendo com frequência e de forma descontrolada no período da seca, ocasionando a perda da capacidade de recuperação da vegetação e desregulação do funcionamento do bioma.

O Cerrado é um dos biomas que mais sofrem com as queimadas, entre 1985-2022 teve 39,9% do total da sua área queimada e 23,3% desta área impactada está em Mato Grosso, que lidera o ranking seguido do Pará com 14,8%3. Em 2022, cerca de 56.885 focos ativos de calor foram registrados no Cerrado, destes,29.039 focos foram no Mato Grosso, correspondendo a 51,04% do total. Já em 2023, até o momento foram registrados 47.400 focos ativos, cerca de 42,5% foram no Mato Grosso, com 20.176 focos registrados4. Diferente do uso do fogo nos saberes ancestrais, o agronegócio utiliza do fogo criminoso como estratégia aos processos de desmatamento e grilagem de terras, causando incêndios florestais em escalas estarrecedoras, buscando a expansão da fronteira agrícola.

Neste cenário, os dados de desmatamento são alarmantes, entre 2001 e 2022 foram cerca de 300.386 km² desmatados e, Mato Grosso foi o 4º Estado que mais desmatou nesse período, com 45.167,64 km², equivalente a 15,04% do total. Já nos últimos 3 anos, o Estado do Maranhão tem liderado o ranking de desmatamento no bioma, cerca de 7.014,81 km² foram desmatados, correspondendo a 25,86% do total, seguido do Tocantins com 19,99% (5.422,99 km²), Bahia com 11,51% (3.121,16 km²) e Piauí com 9,78% (2.652,33 km²)5. Esses dados mostram o avanço do agronegócio e sua destruição para os territórios do MATOPIBA, considerada a fronteira agrícola com maior extensão territorial do mundo6, provocando a expropriação de comunidades rurais e destruição do Cerrado. Os crimes ambientais e as violações dos direitos humanos causados são inúmeros e estão intimamente interligados7.

Águas contaminadas

Com relação ao impacto dos agrotóxicos, os dados são assustadores, cerca de 600 milhões de litros de agrotóxicos por ano são utilizados em todo o Cerrado, o que corresponde a 73,5% do total no Brasil. No Mato Grosso, os agrotóxicos mais utilizados possuem 2,4-D e glifosato como ingredientes ativos, no qual estudos mostraram a presença de 2,4-D em amostras de águas de comunidades tradicionais 32x superior com relação ao valor máximo permitido na legislação da União Europeia, enquanto no Brasil ainda sim se enquadra abaixo do valor máximo permitido na legislação8. A Portaria nº 888/2021, responsável por dispor sobre o controle e vigilância da qualidade da água para consumo, é extremamente falha, não considerando o somatório dos níveis de agrotóxicos encontrados em uma única amostra, avaliando apenas valores individuais, além disso, o monitoramento de diversos ingredientes ativos nem se quer são exigidos pela portaria.

Lutas e resistências

Diante desta realidade, por trás dos números e dados da devastação do agronegócio, os povos e comunidades tradicionais do Cerrado estão ameaçados. Existem muitos desafios para uma vida digna no campo, porém, em meio a tantas dificuldades encontradas, os povos e comunidades buscam valorizar as riquezas naturais, lutando para preservar e conservar seus territórios. Baseado no conhecimento sobre os ecossistemas, estes povos buscam a sobrevivência através de sistemas agrícolas que dialogam com a natureza, através de práticas como as roças rotacionadas e respeito ao período de pousio, garantindo a produção de alimentos saudáveis, respeitando e enriquecendo a sociobiodiversidade.

O Cerrado irriga 40% do território nacional e abastece todas as regiões do país. Deste modo, não se pode considerar que diante de todas as violências cometidas neste bioma seja reduzida apenas a crise hídrica. O que de fato estamos vivendo é uma crise civilizatória porque todo o investimento econômico, político e social não está na sustentabilidade. O que se percebe é uma expansão desordenada de cidades, da agropecuária, da mineração, das queimadas e de tantos outros gritos que colocam em xeque-mate a continuidade da vida. Definitivamente o Brasil deveria defender o Cerrado com todo afinco por ser uma questão de segurança nacional.

É imprescindível o fortalecimento nas formas de resistência desses povos, através de ações que buscam assegurar os direitos territoriais na demarcação de terras tradicionalmente ocupadas, além da destinação de terras à Reforma Agrária.

Referências

1 Cf. Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado presente no Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Disponível em:

2 Cf. MapBiomas. Disponível em: https://brasil.mapbiomas.org/

3 Cf. MapBiomas. Disponível em: https://brasil.mapbiomas.org/

4 Cf. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Disponível em: http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/

5 Idem 4.

6 Cf. Dados do Observatório de Conflitos Socioambientais do Matopiba. Disponível em: https://observatorio-matopiba.com.br/

7 FIAN International, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os Custos Ambientais e Humanos do Negócio de Terras – O caso MATOPIBA, Brasil. Junho de 2018. Disponível em: fianbrasil.org.br

8 Lopes, Helena Rodrigues Vivendo em territórios contaminados [livro eletrônico]: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas de Cerrado / Helena Rodrigues Lopes, Aline do Monte Gurgel, Luiza Carla de Melo; organizadoras Mariana Pontes, Joice Bonfim, Valéria Pereira Santos. — Palmas : APATO, 2023. Disponível em: campanhacerrado.org.br

*Editado por Fernanda Alcântara