Dossiê Abrasco: o grito contra o silêncio opressivo do agronegócio

“A ciência deveria servir a quem, ao mercado ou a população brasileira?”, questiona o pesquisador Fernando Carneiro em entrevista.

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Por Ricardo Machado e Leslie Chaves
Da IHU On-Line

A Associação de Saúde Coletiva – Abrasco lançou no dia 28-04-2015, no Rio de Janeiro, a versão atualizada do Dossiê Abrasco, livro com mais de 600 páginas que reúne uma série de informações sobre os riscos dos agrotóxicos à saúde humana.

A nova edição conta com o capítulo A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia.

“As grandes novidades estão ligadas a dois pontos: à forma e ao conteúdo. Então, o livro passou por um processo de diagramação, de organização das ideias, de inovações na facilitação gráfica, onde se pode visualizar melhor. Outra novidade é que fizemos uma grande parceria com aArticulação Nacional de Agroecologia – ANA e com a Associação Brasileira de Agroecologia – ABA nessa perspectiva de dialogar com outros conhecimentos e saberes”, explica Fernando Carneiro, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Ao analisar a atual conjuntura brasileira, o professor é duro nas críticas a retrocessos importantes como, por exemplo, a retirada da indicação dos produtos transgênicos nos rótulos. “Nega-se um princípio básico, que é o direito à informação. Por que se quer negar esse direito? Se não há o que temer, por que negar que as pessoas saibam o que estão comendo? Isso é uma violência que o Congresso Nacional está fazendo contra a população brasileira”, critica. Além disso, alerta que o paradigma do agronegócio é suicida. “O paradigma do agronegócio não sustenta um projeto de agricultura para o futuro do Brasil. Não é sustentável nos tornarmos um grande exportador de commodities, exportando água, solo, muitas vezes exportando vidas humanas e a nossa natureza”, avalia.

O resultado de um contexto político onde existe um parlamento conservador e a chefe da pasta da Agricultura sendo uma das representantes do agronegócio no Brasil é o que Fernando chama de silêncio opressivo do Estado. “Muitos dos pesquisadores que representam a Associação Brasileira de Ciência – ABC e a SBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio, e sabemos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência está para quem, para o mercado ou para a população brasileira?”, pondera. “Isso é o que ocorre e daí a importância do debate acontecer, porque ele grita frente ao silencio opressivo dos interesses que os grandes grupos querem impor sobre nós”, complementa.

Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde –— área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é pós-doutor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É pesquisador da Fiocruz Ceará e doNESP UnB. Atualmente também coordena o GT Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas (OBTEIA).

Confira a entrevista:

Quais são as novidades do dossiê da Abrasco em relação aos relatórios anteriores?

As grandes novidades estão ligadas a dois pontos: à forma e ao conteúdo. Lançamos um livro que parte de toda uma concepção da ciência, principalmente de uma ciência que quer dialogar com a sociedade, como um alicerce de sua função social. Então, o livro passou por um processo de diagramação, de organização das ideias, de inovações na facilitação gráfica, onde se pode visualizar melhor. Tudo isso para ser uma publicação boa de ler, de interagir; para que as pessoas encontrem o que buscam com mais facilidade, cada capítulo, cada parte tem uma cor e um símbolo diferente, tudo com o objetivo de criar novos recursos gráficos para facilitar processos de compreensão e uso. Essa é a primeira novidade em termos da forma.

A outra novidade é que fizemos uma grande parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia – ANA e com aAssociação Brasileira de Agroecologia – ABA nessa perspectiva de dialogar com outros conhecimentos e saberes. Na quarta parte, focada na crise do paradigma do agronegócio e das alternativas, nós colocamos uma questão que, por exemplo, a Abrasco não tem total expertise, que é a agroecologia. Nós somos uma associação científica do campo da saúde coletiva em articulação com outros campos do saber, como o da própria questão agrícola, questão ecológica, questão da ecologia política, etc. A quarta parte também atualiza o que aconteceu de 2012 até 2014.

Bancada ruralista

Infelizmente, apesar de ter novidades boas, as principais novidades não são boas. Houve uma piora do quadro político, houve uma maior hegemonia da bancada ruralista, que conseguiu vitórias importantes, como a alteração no código florestal, com o objetivo de maximizar lucros em detrimento da preservação ambiental, uma coisa que vai na contramão de tudo que acontece hoje no mundo. Quando o Brasil está vivendo a crise da água, a relação com a preservação das florestas é direta e nós acabamos de aprovar uma lei que perdoa esses empreendedores do agronegócio, que, inclusive, não cumpriram a lei florestal brasileira, a qual garante que eles explorem mais áreas antes preservadas.

Essa foi uma grande perda, e o setor, que sempre teve o domínio do Ministério da Agricultura, tem a Kátia Abreu à frente, ela que é um ícone desse setor, uma pessoa que sempre trabalhou pela flexibilização do registro e maximização do uso de agrotóxicos no Brasil.

Sabemos que no Congresso aumentou a bancada ruralista e a onda conservadora. Agora, com a Kátia junto ao Executivo, temos grande preocupação por conta dos compromissos dela de garantir que tais setores sejam beneficiados. Isso se estende a propostas de desregulamentação total, tirando o papel da Anvisa, do Ministério do Meio Ambiente, concentrando na pasta da Agricultura, que é uma espécie de “Comissão Técnica Nacional do Agronegócio – CTNAgro”, aos moldes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio. É um tema que ganha cada dia mais espaço no governo.

Por outro lado, houve o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia, o Plano Nacional de Redução de Agrotóxicoe essas foram as luzes no fim do túnel, onde, na quarta parte do relatório, exploramos a possibilidade de que isso seja hegemônico e que não fique sem recursos e sem apoio.

Como o senhor avalia a aprovação do projeto de lei que autoriza a retirada do T, de transgênicos, dos rótulos?

Para nós, como cientistas preocupados com a saúde da população e críticos com relação à tecnologia, não a percebendo com algo “sagrado” cujos prós e contras devem ser avaliados — sabemos que há ideologias por trás dos transgênicos —, recebemos esta notícia como uma grande derrota. Isso porque nega-se um princípio básico, que é o direito à informação. Por que se quer negar esse direito? Se não há o que temer, por que negar que as pessoas saibam o que estão comendo? Isso é uma violência que o Congresso Nacional está fazendo contra a população brasileira.

Como são abordadas as contradições entre os perigos causados pelos agrotóxicos e a política do agronegócio no Brasil neste capítulo inédito do dossiê?

As três primeiras partes do dossiê colocam de forma muito detalhada os principais produtos que têm sido utilizados no Brasil e os danos que eles causam. O que se coloca no quarto capítulo é uma discussão de paradigma. Ou seja, o paradigma do agronegócio não sustenta um projeto de agricultura para o futuro do Brasil. Não é sustentável nos tornarmos um grande exportador de commodities, exportando água, solo, muitas vezes exportando vidas humanas e a nossa natureza. Esse modelo precisa de insumos externos o tempo todo (se sobe o dólar já tem gente batendo na porta do governo pedindo mais subsídios), porque boa parte do que se gasta com agrotóxicos é de princípios ativos que são importados à base de moeda estrangeira, sem contar na alta do custo da produção. Estamos falando de um modelo que, apesar de todo o discurso moderno e dinâmico, vive às custas do Estado brasileiro.

Contraposição

A contraposição que é colocada no capítulo da agroecologia apresenta um outro paradigma que respeita os conhecimentos tradicionais, a preservação à vida, um projeto soberano de país em que nossas sementes estejam sob a nossa guarda, não sob a tutela de multinacionais que só pensam no lucro. Neste capítulo, caracterizamos para onde estamos indo e para onde deveríamos ir na perspectiva de uma sociedade mais justa e sustentável.

Quais são as próximas etapas da pesquisa?

Fizemos, no final da última semana, uma reunião com a equipe de trabalho e a perspectiva é, neste momento, organizarmos o lançamento do dossiê cujo foco é trabalhar na divulgação, debater com a sociedade e lançar em todo o país. Esse é nosso compromisso antes de nos arvorarmos em uma quinta etapa. Não há qualquer tipo de direito autoral, está tudo disponibilizado na Internet e tentamos cumprir o papel social da ciência.

Porém o que devemos fazer nas próximas etapas é trabalhar dois eixos: os agrotóxicos urbanos, desde a nossa casa até as campanhas de saúde pública, e a guerra química que foi travada desde os tempos da ditadura até a atualidade contra populações vulnerabilizadas; ou seja, o uso de agrotóxicos contra populações indígenas, sem terras ou grupos que estejam incomodando grandes empreendimentos. Há registros disso e o trabalho da Comissão da Verdade e da Reforma Sanitária está investigando casos onde isso aconteceu. Em princípio, são dois desdobramentos em que trabalharemos.

O país ainda se mantém na posição de maior consumidor de agrotóxico do mundo? Quais são as dificuldades de sair dessa posição?

A dificuldade é que não se tem um plano político de implantar o Plano Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos. Até mesmo do ponto de vista capitalista seria mais inteligente não utilizar agrotóxico, pois a redução maximizaria o lucro. Mas o que acontece é que a grande dificuldade do desenvolvimento do uso tecnológico dos transgênicos é de estar voltado para “casar” semente com agrotóxico. Há toda uma cadeia de lucro que depende desse modelo de monocultura, que faz emergir, inclusive, o uso da palavra “praga”, em que uma espécie vegetal é cultivada em um ambiente artificial, favorecendo a proliferação de uma ou outra espécie de insetos que acabam dando o nome de “praga”. Mas isso é uma característica do agronegócio e a manutenção desses grandes sistemas artificiais vai exigir sempre o uso de muito agrotóxico e “tratamentos” com agroquímicos de toda a ordem, pois não há sustentabilidade. Esse preço está no DNA do agronegócio, que talvez possa diminuir, racionalizando um pouco com técnicas que deem margem para isso, mas há um limite. É por isso que defendemos a transição agroecológica.

Não se trata de acabar, do dia para a noite, com o uso de agrotóxicos no Brasil, mas conceber um plano que envolverá investimentos da Embrapa, que, ao invés de aportar 90% no agronegócio, deveria aplicar a metade; de fortalecer pesquisas agroecológicas que garantam produtividade e qualidade dos alimentos; de problematizar a formação de engenheiros agrônomos majoritariamente voltada para que eles se tornem, na prática, preceptores de veneno, ao invés de se tornarem profissionais que olhem para a saúde dos ecossistemas, não ficando focados somente na destruição da praga. É toda uma mudança que passa pela formação universitária, pelo investimento em pesquisa, pela valorização de cadeias de produção agroecológica, que até pouco tempo atrás não podia produzir sem veneno.

Na ditadura essa aliança atingiu o nível máximo, tanto que os generais ocuparam cargos de diretoria nestas empresas. Houve, à época, um acordo tal que só se podia conseguir o crédito caso houvesse a garantia da compra do veneno. Existe muito compromisso do Estado com toda essa prática, e o Estado brasileiro é muito grande para apoiar o agronegócio, mas muito pequeno para apoiar a agroecologia. Nosso grande desafio é começar essa transição em nome de nossa sobrevivência e das futuras gerações.

Nesse contexto, como o senhor avalia o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica? Como ele tem sido uma alternativa ao uso de agrotóxicos?

Ele é uma grande esperança e uma grande aposta dos movimentos sociais, então deveria ser priorizado politicamente pelo Estado. O dossiê dá toda a base científica e política para que isso seja adotado pelo governo como sua prioridade.

O livro está sendo lançado no mês em que a “Campanha Nacional Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida” completa quatro anos de luta. Como o senhor avalia a trajetória dessa iniciativa? Quais são os desafios a enfrentar?

É importante dizer que esse livro, ao longo do processo, envolveu a própria campanha, quando percebemos que havia outros conhecimentos com relação à luta contra os agrotóxicos que deveriam ser envolvidos; não se tratava tão somente do conhecimento científico. Em um determinado momento, que foi ao final da parte três —A Ecologia dos Saberes —, nós envolvemos a campanha também como autora do dossiê, o que continua nesta quarta etapa. O dossiê vai ajudar muito a potencializar as ações da campanha, porque foi construído com esse objetivo, pois pode subsidiar cartilhas para serem trabalhadas com a população. Já recebemos três convites de lançamento do dossiê das Assembleias Legislativas dos Estados da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Ceará, e isso potencializará muito a campanha.

Como poderiam ser formuladas campanhas efetivas direcionadas a consumidores e produtores sobre os riscos dos agrotóxicos?

O Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, que participou do lançamento do dossiê, tem um mapa de mais de 400 feiras agroecológicas, disponibilizado em um aplicativo que ajuda as pessoas a encontrarem feiras e, inclusive, cadastrar as que não estejam neste mapa. Esse é só um exemplo de estratégias da sociedade civil que têm colaborado para esta questão. É muito importante para o consumidor ter opção.

Relação direta

Se pensarmos somente nas grandes cadeias de supermercado, eles têm lidado com a questão da agricultura orgânica ou agroecológica como “Nicho de mercado”. Se vamos em uma dessas redes e compramos uma alface orgânica por R$ 5 ou R$ 6, rompemos com aquilo que defendemos na agroecologia, isto é, a alimentação saudável acessível à população brasileira. Não enxergamos estas redes como nicho de mercado; queremos acreditar queagroecologia seja algo acessível a todo brasileiro. A Abrasco recomenda que a população busque as feiras agroecológicas também, porque, se elimina o atravessador, temos uma relação direta com o produtor e isso fortalece movimento social de luta pela Reforma Agrária e por um país mais justo.

Após o lançamento do livro, na última semana de abril, houve um coquetel agroecológico com uma cooperativa de produtores camponeses, que serviram sucos naturais e também culinária a partir de elementos produzidos no dia a dia e sem agrotóxicos. Não passou Coca-Cola, não passou sucos artificiais, foram só produtos saudáveis. É por isso que devemos ser coerentes e continuar fiscalizando e, sobretudo, dar o exemplo.

Como o senhor avalia a atuação do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos?

É muito incipiente. É um programa que ainda não foi oficializado pelo governo e é importante que se assuma isso formalmente. É preciso que o Estado destine recursos para este programa para que ele não seja somente uma carta de intenções, pois não se trata de um programa com recursos definidos claramente. Então é muito importante que o governo faça, pois não se trata de um programa com recursos definidos claramente. Havia uma expectativa de melhorar a vigilância da saúde com relação às populações no que diz respeito aos agrotóxicos, mas nenhum resultado disso vem sendo apresentado. O máximo que temos de informação é o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Vimos declarações da superintendência da Anvisa de que “os dados do PARA não são para se preocupar”, ou seja, a própria entidade tentando amenizar o que ela está mostrando com medo dos desdobramentos em relação ao agronegócio. O governo está com muito medo de encarar o agronegócio e fiscaliza-lo em termos de seu impacto na saúde e ambiente. Está na hora do governo criar mais coragem para defender a vida e a saúde.

Foram realizados novos estudos a respeito dos riscos do uso de agrotóxicos para a saúde? O que esses dados revelam? Quais são as principais doenças originadas da contaminação por agrotóxicos?

Para além do que já foi exposto exaustivamente pelo dossiê, há duas grandes novidades, divulgadas muito recentemente, em abril. Uma delas é o glifosato, que a International Agency for Research on Cancer – Iarc classificou como uma substância potencialmente cancerígena, inclusive com dados do Brasil, doInstituto Nacional do Câncer – Inca, e passou a classificá-lo como um provável carcinógeno humano. Isso é muito sério porque o glifosato é responsável pela venda de 40% dos agrotóxicos no Brasil e ele é o herbicida ligado à soja transgênica, uma das principais commodities exportada pelo Brasil. Isto é gravíssimo.

A outra questão é que na mesma reunião foi apresentado o Malathion, que é pulverizado com fumacê, em que se combate a dengue, mas pode gerar câncer segundo a IARC. Essas aplicações muitas vezes são feitas sem critério, com equipamentos descalibrados e resultam muito ineficientes. Está a epidemia de dengue que o Brasil vive novamente que reforça esses argumentos. Podemos imaginar essa aplicação em uma grande escala, com milhares de pessoas e os impactos que isso pode gerar caso, no futuro, seja comprovado que esse é um produto carcinogênico. Estamos falando de milhões de pessoas, o que torna tudo isso muito grave.

Ministério da Saúde

O próprio Ministério da Saúde tem se posicionado de uma forma muito reativa, realizando poucos diálogos com quem está querendo criticar esses modelos e que busca outras alternativas que respeitem mais os ecossistemas e asaúde da população. Há outras experiências exitosas no combate à dengue que não são focadas na solução química, mas, ao contrário, no investimento em saneamento ambiental, melhorias das condições de vida. Lembro-me quando o ministro Adib Jatene fez uma proposta de controle do Aedes, um dos maiores componentes era o programa de saneamento ambiental. O que aconteceu é que justamente foi cortado o recurso para o saneamento ambiental. No entanto, para a compra de veneno nunca faltou recurso. Não adianta enxugar gelo com relação à saúde da população brasileira.

Deseja acrescentar algo?

Todo esse debate que estamos fazendo é totalmente contra-hegemônico na ciência brasileira. Mais de 90% dos pesquisadores ligados aos agrotóxicos e coisas do gênero estão voltados à maximização do seu uso, e pouca gente está estudando os impactos na saúde e no ambiente. Fizemos esse levantamento por meio da Plataforma Lattes do CNPq e disponibilizamos no Dossiê. Tanto que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e a Academia Brasileira de Ciência – ABC, em uma carta recente, fizeram uma defesa às tecnologias transgênicas que nós repudiamos da forma que tem sido usada na agricultura, por exemplo. A postura da ABC e SBPC, a meu ver,  é anticientífica, porque coloca a tecnologia como algo sagrado e não abre margens ao contraditório. Eu pergunto: qual é o impacto na saúde do aumento do uso dessas tecnologias na agricultura brasileira? A SBPC e ABC tem tomado posicionamentos frente a imprensa e não há uma consulta ampla as Associações Científicas como a Abrasco e nem mesmo há abertura a questionamentos, nem mesmo para debater o princípio da precaução, o que é reforça o que tenho chamado de postura anticientífica.

O que está por trás disso? O que se pode adiantar, a partir das pesquisas que estão registradas no dossiê, é que há conflitos de interesses. Muitos dos pesquisadores que representam a ABC e a SBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio, e sabemos todos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência deve servir a quem, ao mercado ou a população brasileira? Ou seja, o que o dossiê exibe é que “o Rei está nu” e descreve as relações entre entidades como a Embrapa, que fazem testes de agrotóxicos, com os serviços privados que lucram com o agronegócio, ao mesmo tempo que se disponibiliza uma estrutura pública para isso. O resultado disso tudo é um totalitarismo em que o Mercado dita as normas, o Estado se ausenta e o Congresso dá carta branca. Isso é o que ocorre e daí a importância de o debate acontecer, porque ele grita frente ao silêncio opressivo dos interesses que os grandes grupos querem impor sobre nós.